No texto de apresentação, Lisa Alves pergunta: Quais? A letra Q estilizada me chama a atenção e passo a observar as incidências ao longo do texto: Que; Quem Quando; Quantos; Qualquer; Quantas; Questionários; Quer; Queria; Quatro; Quase; Quais; Querendo; Qual; Quis.
QUERO lidar, enfrentar meus abismos com sabedoria. Mas a imagem da pequena Isabel me assusta. Procuro o pensamento positivo, embora Cícero e Antonio me patrulhem a mente com olhares persecutórios. Maria Fernanda. O marido admoestador; a luxúria do estado de coisas. O universo de uma narrativa perturbadora com ares de normalidade. “Até o dia em que você escuta um médico imbecil dizer que as crianças que se acidentam em excesso podem estar querendo voltar ao hospital porque associaram a dor do machucado ao prazer de serem bem cuidadas” (KRIEMLER, 2017, p. 21).
QUANTO vale o sossego ao se deitar a cabeça sobre o travesseiro cheiroso; a roupa limpa, bem lavada, com cheirinho de amaciante. Beatriz e Bernardo parecem me acompanhar neste momento da escrita. O casal que poderia ser perfeito se a perfeição existisse. Mas existe Sofia. E o que poderia se transformar em um triângulo sequer aproxima-se da curvatura de um círculo: que se pretende vicioso. E Mariana que atravessa o caminho das coisas. Primeiro em estado inerte, de barriga adentro. Depois de prolongamento do caos interior, e arrebenta a bolsa, vem ao mundo seguida de um acidente que vitima seu pai.
QUANTO tenho em mim do pai de Beatriz, que a molestava. A mãe, sem tempo para observações. Gustavo, gêmeo aparente de ideias distintas. “Aprendi com meu pai estúpido que a gente disciplina tudo, até as emoções. Principalmente as emoções” (idem, p. 61). O pai que se revela um monstro ao longo do caminho. O pai que deixa de ser arquétipo para se transformar em um tipo qualquer. Mas pai. Que padrasto não é necessariamente palavra ruim.
QUIS que fosse diferente a história de Bernardo, de Cícero e Antonio, Isabel, Beatriz. Não bastou que eu quisesse, não foi suficiente o que eu quis. Talvez a chave seja o universo de Clarice. Os encontros de uma terapia de confronto. O homem desconhecido e o que se dispõe naquela noite. O bunker. Mas Laura não deixa. A filha morta. “Clarice é um rosto-esfinge. Eu não gostaria de ouvir o que eles ouvem. (…) Eu preciso dela e não quero perdê-la para um sentimento inútil de revanche” (idem, p. 207).
QUANDO escrevo lembro do rato acuado. Paredes brancas me perguntam quem sou; não posso pensar que um cônjuge jovem não possa acompanhar um ente querido que se torna inválido da noite para o dia. Ou que uma mulher na flor da idade tenha que fechar os olhos para sua juventude por conta de uma fatalidade. Ou que as pedras ressignifiquem o caminho.
QUERO pensar que “Algumas histórias reais parecem de mentira” (idem, p.241). as manchas de tinta dão ao livro um formato concreto. Sombra e luz. Transversalidades. Linhas sóbrias, camadas de sentimento uniformizadas, customizando a dor que não seca nunca. Linhas pretas, paralelas, grades que preparam uma mancha de tinta maior, espécie de caixão. Luto fechado. Laura está por dentro de tudo. Livre-arbítrio da escritura.
QUANTO mais o tempo passa, a dor vai se transformando em uma coisa sólida, não se liquefazendo tão rápida. “A navalha encostada na minha garganta está fazendo a pele arder. Devo estar sangrando. Mas não estou com medo. Surpresa, sim. Reconheço o enorme anel de caveira na mão que agarra o meu corpo por trás” (idem, p. 253). O mal que vem de dentro talvez tenha sido empurrado à força, cá de fora. Meninos não são necessariamente ruins. Meninas não nascem para praticar o bem. Há homens e homens. Mulheres e mulheres. Bons-maus-ruins.
Quando quero, quanto quis; moeda de troca. Ela joga para cima; se der cara o suicídio lhe abraça, vira pasto para os vermes. Se coroa, segue com Clarice “e o projeto das crianças, o cão de Sofia, o Alzheimer de mamãe, os altos e baixos de Isabel, as crianças abusadas e maltratadas da casa abrigo, as trepadas anestésicas, as giletes na gaveta do banheiro. Afiadas. Pacientes”. (idem, p. 269). O fim do livro não é o ponto final. Uma sombra maior envolve a imagem da gilete no banheiro. Muita água para passar debaixo dessa ponte entre duas (ou mais) vidas.
REFERÊNCIAS
KRIEMLER, Cinthia. Todos os abismos convidam para um mergulho. São Paulo: Patuá, 2017.