Passo a passo ela chega. Com seu corpo envolto em tecidos, você a percebe, como uma presença que te faz questionar o que é a realidade afinal? Olhos humanos e outros olhos inanimados cruzam-se numa interseção, num entranhamento que reflete o nascer no ir e devir da rua. É o parto das ideias, é a boneca que dá luz à própria cabeça e para pessoas, ruas, vias, vielas, praças, lugares comuns, é Maiêutica de Raquel Mützenberg.
Com sua performance ela circula pelo país com o Palco Giratório e já passou por Porto Alegre, Cuiabá e Rondonópolis. E vai para Belo Horizonte, Porto Velho, Teresina, Florianópolis, Belém, Rio de Janeiro, Recife, João Pessoa, só para citar alguns. Fica aqui o seu relato sobre a sua interação com o público nas ruas de Porto Alegre.
“Tivemos um dia de reconhecimento da cidade, eu olho, fotografo, faço todo o circuito. Lá em Porto Alegre fizemos o reconhecimento com o escafandro da Milena, ele é o estrangeiro. O que pude perceber vendo ela, que ela foi livre e eu fui com a câmera, e filmei algumas expressões, fiz algumas fotos, o que eu pude entender, era que tínhamos uns pontos propícios para ter músicos.
No dia da performance descobri outro ponto, por que foi um dia depois do escândalo do Temer, era quinta-feira e tinha uma concentração da Central Única dos Trabalhadores (CUT), dos partidos e no dia que fizemos o reconhecimento foi mais tranquilo, mas ainda assim era um fervo. Pude perceber, mesmo de escafandro, quando tem uma proposta corporal chama a atenção. E dependendo de qual era a proposta ela causava um ou outro tipo de impressão.
Descemos atrás do mercado municipal de Porto Alegre e eu contornei o mercado pela lateral e cheguei até a frente. Na lateral tinham vários pontos de ônibus e era uma calçada estreita, quando eu desci encontrei uns hippies que falavam espanhol e eles ficaram chocados, ‘pode crer, realismo, vou te dar um dinheiro tal’, então foi algo de artista com artista. E me permiti falar com eles, perguntaram meu nome, eu disse, agradeci a grana, enfiei dentro do figurino e virei. Aí eu vi que tinha os pontos de ônibus e não passamos nesse trecho no reconhecimento. É legal também se surpreender com o que vem. Encarei algumas pessoas, tentei pescar algumas, mas era um lugar onde as pessoas não paravam, estavam apressadas, olhando os ônibus, era difícil fixar.
Tinha uma senhora de uns 40 anos, parecia uma paraguaia, cara de índia, mas com roupa de gente da cidade e ela ficou me olhando muito. Quando percebi que ela estava me vendo fui pra perto dela e ela não tinha medo como muitas pessoas parecem ter. Ela não tinha medo, cheguei e peguei na mão dela, fiz ela pegar na barriga, mexi a barriga por dentro, dei um abraço nela. Ela olhava sempre entre meu olho e o olho da boneca, a duplicidade, e ela disse muito obrigada, seu trabalho é muito bonito, nessa hora arrepiei, quase chorei, senti que tinha alguma coisa ali da coisa da mulher grávida. E são sempre senhoras, passou dos 40 anos, fica olhando, não sei que que é isso, mas posso imaginar, de você já estar em outro lugar, de ver a gravidez como algo que já passou, ter outro olhar, enfim.
Continuei, na hora que cheguei na esquina tinha mais um ponto de ônibus. Alguns adolescentes ficaram bem ligados e um menino se fixou em mim, começou a me seguir. Virei a esquina, tinha uns 3 caras que pareciam ser moradores de rua e tal, há uns 10 metros de mim e a uns 5 metros tinha um senhor sentado com acordeão, músico de rua, ele fez uma espécie de repente, falava que tava chegando o capeta, que era um bicho muito feio e tal.
As pessoas começaram a se concentrar, e ele meio que foi um cicerone, meio engraçado, olhei pra ele e pensei ‘capeta chegou que legal’. Eu adoro quando os homens acham que é uma coisa assustadora, pensei cara então é aqui, vou parir aqui. Fiz a movimentação do parto. Quando arreganhei a perna, ele começou ‘ah é uma performance, é um teatro’, ele ficou muito chocado e parou de tocar. Começou a juntar muita gente em volta, fiz o parto, e quando levantei do parto, eu tiro a cabeça dela e amamento. Levantei ela, fiquei em pé amamentando, e continuei. As pessoas abriram, as pessoas se esparramaram e percebi uma galera me seguindo, tipo umas 15 pessoas.
Nesse momento, tentei fazer uma coisa que fiz no RJ, que pela primeira vez pedi pra alguém do público ir me carregando, tava cansada, e pensei vou tentar também. Vi um cara grande, fiz ele pegar na barriga, dei um abraço e perguntei: você se incomoda de me pegar no seu colo? Ai ele não de boa tal, quando subi percebi que ele estava meio tremendo, ai falei me leva só até onde você quiser, na hora ele me soltou, me levou uns 10 metros só.
Quando eu já tinha passado do mercado público, e tinha uma avenida que ia subir pra pegar a Esquina Democrática que é onde rola todas as manifestações, o trajeto era cheio de taxista e achei que era comigo que eles estavam gritando, fiquei meio assustada. Resolvi ir para rua, eles falavam na verdade para as pessoas darem espaço por que queriam ver. Passei pela rua e quando subi no passeio, tinha mais taxistas ali na calçada, e chegou um cara, que a Milena disse que podia ir lá interagir comigo, ele pediu pra pegar na minha barriga, e queria fazer selfie tal, mas aí segui meu rumo.
Em volta tenho pouca visão, mas percebi que tinha muita gente, as pessoas da frente estavam vindo, formando uma roda, e era lugar de retorno do ônibus. Quer saber vou parir ali, calculei espaço pro carro passar, fui no meio do cruzamento e fiz outro parto. Os carros paravam e outros passavam olhando, queria fazer ali por que gosto de fazer no asfalto. O asfalto é quente e tinha muita gente de rua, que você via que morava ali, pensei que massa, fiz o parto, foi um lugar de sol em algum momento na cabeça tive uma tontura.
Fiz o parto e na hora que levantei, uma senhora, acho que mora ali perto, é uma pessoa da rua, só me encarou, olhou de cima a baixo e a gente ficou se encarando, mas ela queria flagrar qual que era. Uma quadra pra cima era onde estava a galera das manifestações, quando eu ia subindo eu acompanhei o áudio que eles estavam falando no megafone, pouca gente subiu comigo, ouvi galera do movimento feminista falando, quando cheguei perto da roda, era uma mulher do PT, ia entrar na roda e não entrei.
Fui pro calçadão, primeira coisa que senti, o chão frio, muito frio. E fiquei cara que droga, a gente estava no asfalto, um lugar que estava sol, e calçadão é pedra, mármore, sei la o que é aquilo. No chão frio eu tenho impressão de que não tenho vontade de deitar, de fazer sabe, não é legal, não dá vontade. Mas o calçadão é muito largo, tem muita gente, muita informação, muita gente nas lojas. A galera nas lojas saindo pra fora pra ver o que era, ai escolhi um espaço que não ia atrapalhar, não tinha ninguém vendendo nada perto e tinha crianças. Fiz um parto.
Já estava a dois quarteirões de terminar, 50 metros mais pra frente percebi um cara me seguindo, fazendo vídeo e comentando ‘é muito real, socorro, o que será que ela faz’. Percebi q ele não tinha visto o parto. Tinha um músico e não queria roubar o público dele.
Geralmente faço um parto e nesse eu fiz três e ia para o quarto. As pessoas estavam abertas a saber o que era aquilo. Tenho a impressão de que quando olham para a cara da boneca e veem que tem uma proposta realista rola uma identificação. Sai da ideia de que é uma representação. Aí vi uma menina com um neném no braço e ela estava sorrindo, pensei vou fazer um parto. Comprei um amendoim, foi a primeira vez que mantive a boneca e me separei de fato, foi doido, porque o cara me filmando estava narrando tudo o que eu estava fazendo, ‘ela tá comprando amendoim e a boneca ainda tá existindo’. Ele estava chocado com a duplicidade. Juntou muita gente por conta do fluxo alto no calçadão, virei a esquina andei mais um quarteirão e não teve mais nenhum grande encontro. 1h30 cinco quarteirões, é no ritmo né”.
que massa!!!!!!!!!!!!!! essa sua narrativa é chocante!!!!!!!!!