Por Carole B.*

não, eu não fui prá aula de música hoje. um camarada do museu passou aqui de surpresa, fomos almoçar na pensão da esquina e tomar umas cervejas, deu um barato, depois sonolência, depois os ânimos ruíram. ele é esguio e já passou dos sessenta. não sei se são seus grandes olhos de criança ou aquele chapéu verde que eu queria pendurar no meu armário ou suas mãos firmes e alongadas que às vezes imagino nos meus peitos; sei que ele é lindo e sempre vai embora cedo, como toda beleza. cochilei ouvindo ‘sweet nuthin’, mas antes rezei pra não acordar. depois falei um pouco com lúcio, ele me entende muito mais do que o espelho. às vezes me escreve coisas calorosas e insiste em dizer que é depressão. lúcio acha que a morte é fria. digo a ele que qualquer contato visceral é CALOR; as pessoas associam o ‘quente’ ao verão, festas, sorrisos, mas não sei, o verão é uma casca frágil, a temperatura se mede pela amplidão do contato, não pelo fahrenheit. uma frieza intensa é quente, por exemplo. o morno é a coisa mais gelada que existe. um iceberg no ártico é puro incêndio. lúcio se desculpa por não ter ligado no meu aniversário, estava deprimido. digo a ele que não me importo, joana também se desculpou, ela tem enxaqueca aos domingos. o aniversário me faz lembrar que eu sempre envelheço muito mais rápido que a passagem do tempo. meu desespero estava tamanho que anteontem entrei em um SHOPPING CENTER, pensei em comprar uma arma, um doce, um livro, mas me sentei em uma poltrona e comecei a chorar. descobri que gosto de ver as pessoas caminhando. não preciso falar com elas, mas me comunico ao comover-me com seus passos. é diferente ser solitário em casa e ser solitário na rua – às vezes, olhar ao redor faz toda diferença, mesmo para os indiferentes. de um ano pra cá passei grande parte do tempo no meu quarto e definhei. daí voltei a estudar música e isso me faz sair ao menos duas vezes por semana, além do quê trabalho sábados e domingos no teatro, lá tem gente à beça e todos se conjugam de modo singular; eu fico parada rindo escondida enquanto a gravidade brinca, incontrolável, com o sonho de voar. às vezes penso que não é tão ruim assim fazer o que todas as pessoas fazem. é possível fazer coisas comuns sendo incomum; inclusive é um favor para o mundo, porque quando os incomuns fazem coisas comuns, elas começam a se modificar – foi o que falei para lúcio. falaria o mesmo para joana. somos três almas sensíveis demais pra carregar as demandas do estômago. nossa amizade, aliás, nasceu assim, na penumbra. penso em alguma alegria que tenha existido. o rascunho de um beijo. uma coreografia ébria. o encontro sem frações – todo reconhecimento também faz aniversário. ‘only last summer’… ou last fall (sou britânica, baby). semana passada achei que ia enlouquecer, juro que ainda não tinha me flagrado assim, tão down. não é que as coisas ‘deixaram de fazer sentido’, não, isso é fácil superar; pior é quando as coisas fazem sentido, mas o sentido tanto faz… daí falei com joana, chorei muito no ônibus lotado e um rapaz me cedeu seu lugar, quero dizer, chorar em pé é muito pior, porque PESA – sabe quando alguém carrega sua mochila? então, não se pode carregar as lágrimas de ninguém, mas eu fiquei encostada no banco com ares de gratidão e sede. depois disso melhorei, TURN POINT, o inconsciente emerge como um salva-vidas. minha casa é uma bagunça, chuveiro queimado há mais de um ano, as frutas mofam no inverno, não consigo limpar o chão, não consigo fazer café sem dor, perdi o apetite, me obrigo a almoçar fora porque o estômago (já falei dele) é cheio de melindres, não suporta ficar sem atenção (lembro de cada moeda gasta em que se oculta a indigestão). depois do turn point, consegui cantar um pouco, mas meus pulmões ainda doem, me desespero achando que tenho câncer terminal e vou morrer no chão da sala; dias depois chega o vizinho, a quem nunca dei bom dia, e me reconhece pelo CHEIRO. she ain’t got nothing at all’… não consigo mais me masturbar, nem pensando no chapéu verde do colega do museu. não tenho funcionado, sabe? lúcio me consola, mas ele também não funciona. rolaram umas conjunturas astrais fortes, somos ambos de áries, este é um ano de MARTE, nosso planeta regente. mas joana é pisciana e também sofreu bastante esses dias, isto é: NÃO É. mas traz alívio. me faz crer que acabou o inferno astral. um inferno a menos. tenho pensado em me mandar uma outra vez. lugar menor que não precise varrer tanto. levar somente as muitas coisas que eu não tenho. louvar o túmulo DAQUELA afinidade. comer nas horas certas, mas também na hora incerta – o perigo da tristeza é que ela aplaca a fome cedo. mas não quero nada médio. o cheque do trabalho finalmente compensou. logo compro cordas novas, uma gaita em dó de blues e começo a errar de novo. EXATA. insolente. líquida. e da capo.

* Carole B. é poeta e mora no Rio de Janeiro
Compartilhe!

Comentário

Deixe um comentário

Please enter your comment!
Please enter your name here