Por Sika Ishizuka*
Como diversas crônicas feitas nos últimos meses, fui incumbida de escrever uma reflexão sobre a minha existência como artista em meio a pandemia. Pensei, pensei… e nada de novo veio em minha mente. Mas algo que me instiga é pensar sobre a minha existência no mundo, dentro de um espaço e tempo diferentes a cada época.
Desde que vim para São Paulo, minha vida mudou completamente. A rotina, os lugares, as relações… tudo se renovou. Mas um dos pontos cruciais dentro deste âmbito de vivência por aqui, foi o dia em que virei “cachorreira” da Praça Roosevelt.
Localizada no centro da ‘selva de pedra’, a praça foi construída sobre um viaduto. Uma coisa diferente para a concepção de uma cuiabana. A calmaria da manhã na parte de cima da estrutura, ofusca a fumaça e o barulho de carro de, pelo menos, umas seis (ou mais) vias na de baixo.
Lembro da primeira vez em que fui a este lugar. Era janeiro de 2017, época em que ainda estava planejando a minha saída de Cuiabá, mas não tinha certeza para onde. Mal sabia que eu e este lugar nos encontraríamos poucos meses depois… de forma um tanto definitiva.
“O reencontro”
No final deste mesmo ano, me mudei de cidade, profissão, me casei e ganhei um “filho”. O nome dele é Leopoldo. Um ‘senhor’ barbado e de sobrancelhas brancas, sem parte dos dentes e, com aproximadamente 15 anos de idade. De espécie canina, gosta de comer, dormir e de passear. Este último com bastante destaque.
Nos primeiros dias, fiquei um tanto incomodada. Não estava preparada para ter esta responsabilidade. Afinal de contas, cuidar de um ser-vivo, seja ele qual for, exige uma certa responsabilidade. Mas, pela ‘falta de escolha’, me envolvi com o momento e defini uma logística de rotina (como boa virginiana que sou).
Por volta das 9h30 de toda manhã, levava o Leopoldo para passear. Ainda não tinha intimidade com o centro de São Paulo à época. Assim, visitei diferentes lugares próximos ao antigo apartamento, na Rua Álvaro de Carvalho. Próximo ao metrô Anhangabaú.
Subi a minha antiga rua, virei a Martins Fontes e avistei a Praça Roosevelt. Suspensa, cheia de escadas, com diversos bares em volta e com bastante manifestação artística. Por que não frequentá-la mais vezes?
Logo que cheguei, percebi a movimentação de vários cachorros, juntamente com os seus ‘humanos’. E vi que era comum pessoas como eu, que moravam nas proximidades, levar os dogs e relaxar um pouco naquele espaço amplo e convidativo para uma manhã de sol.
Quis me entrosar. De repente, conhecer os ‘nativos’ desta selva seria um bom começo para aquela nova jornada. Uma vez que estava um tanto perdida nos primeiros meses, devido a muita informação nova que estava processando com a vida diferente. E foi aí que tudo começou…
“Amigos de infância”
“Diga com quem tu andas, que direi quem tu és”. Esta é uma das frases que mais escutei durante toda a minha vida. E, hoje, no auge dos meus 32 anos, fico feliz deste conjunto de palavras existir. Pois, tenho muito orgulho da ‘minha gangue’. E às vezes até me acho. Confesso :p
Em meio aos passeios matinais, percebi a presença de dois senhores de sessenta e poucos anos com os respectivos ‘filhos’. Um era simpático e mais aberto. O outro, de poucas. Fiquei meio tímida quando o primeiro veio falar comigo. Um sotaque castelhano, bem vestido e com uma ‘pincher’ gordinha nos braços. Chegou perguntando quem eu era e o nome do Leopoldo.
Comecei a contar a história do Leo: “Foi adotado há dois anos pelo meu marido, depois de passar seis anos no canil. Já era idoso quando resgatado e com a mesma quantidade de dentes. Foi escolhido para fazer a ‘segurança’ da casa da minha sogra, após um assalto. Não passou no teste e veio morar conosco”, disse confiante.
Este relato pegou. Como sempre pega. Ganhei a confiança dele e ele se apresentou. Descobri que falava com um ex-guerrilheiro comunista argentino. Deportado do país na ditadura militar, na década de 70, mora em São Paulo desde então. Viajou o mundo e foi várias coisas na vida. Apicultor, fotógrafo, dono de pousada, loja de produtos naturais, minerador, advogado, entre outras coisas que não cabe em um texto só.
O outro, delegado da Polícia Federal aposentado e pernambucano. Foi chefe da Interpol e escrevia artigos semanalmente a um importante jornal. Quando falo dele, gosto de dizer que ele é ‘delegado da PF não praticante’, uma vez que o pensamento dele é totalmente desconectado com os antigos colegas de trabalho, em relação a visão política que no caso, era ‘canhota’.
Sem esquecer do cachorro dele: um Yorkshire. Enfezado, que o obrigava a caminhar depois de algumas duras latidas. Ele, a pincher e o Leopoldo são três velhinhos que, igualmente, se encontraram e fazem companhia um ao outro.
Da mesma forma, eu conquistei a confiança dos ‘humanos’. E nos tornamos inseparáveis nos passeios matinais na praça Roosevelt. Agreguei o meu companheiro às conversas, e os assuntos aumentaram e ficaram cada vez mais agradáveis.
Trocamos tupperware, presentes, natais, finais de ano, histórias, experiências e momentos incríveis. Até pedi um colchão emprestado. Bem coisa de vizinhos que se apoiam. Foi aí que percebi o ‘time’ de que um novo grupo de amigos se formava.
Pandemia e reflexão
Com a chegada do vírus, nossa rotina mudou como milhões de pessoas no mundo. No entanto, os passeios continuaram. O Leopoldo não faz necessidade em casa. O que é maravilhoso, se não fosse pela pandemia. Assim, coisas foram adaptadas. Umas correm positivamente e outras nem tanto, por conta da saudade.
Meu amigo argentino está completamente isolado, devido a um problema de saúde. Estamos este tempo todo só trocando mensagens e vídeo chamada. O outro, está firme e forte nas caminhadas. Sempre com um metro de distância de qualquer um e uso constante de máscara.
Mesmo com essas mudanças, as longas conversas continuam. Sinto às vezes que estou numa verdadeira aula de história, com direito a viagens pelo tempo, dentro de experiências profundas. E que tudo acontece nesta praça, no coração de uma cidade cravada por acontecimentos. Meu envolvimento com o lugar foi tão grande, que tive a sorte de me mudar mais próximo antes a este surto.
A vida é mais linda quando se tem amigos verdadeiros. É como universos diferentes que se encontram e se adaptam, juntam cometas e asteroides, e apreciam a luz das estrelas de cada um. Vejo este acolhimento como parte de um privilégio sem tamanho, que jamais esperaria, mas que com certeza só encontraria em São Paulo.
E como num fim de filme, daqueles que tocam o coração na hora de pensar sobre a vida, digo que jamais tive amigos como os de hoje. E nutro uma eterna gratidão. Pois jamais me esquecerei destes dias, pela manhã, na praça Franklin Roosevelt.
*Sika é artista visual e, atualmente, jornalista. Tem amor de mãe por um cachorro banguela de meia idade e não pensa na maternidade humana.