Por Daniel Aarão Reis*
“A gente se arrebenta e morre e Macron não está nem aí”. A frase, raivosa, dirigida ao presidente da França, explode na boca de cada um: são os “coletes amarelos”, vestimentas usadas pelos que protestam nas pequenas e grandes cidades contra o governo e as instituições.
Tudo começou no sábado, 17 de novembro do ano passado, data da Ação I. Mobilizadas pelas mídias sociais, cerca de 300 mil pessoas foram para as ruas, de forma autônoma, ao arrepio dos partidos e sindicatos. Hoje, 26 de janeiro, está programada a Ação XI, onze sábados consecutivos de passeatas, expressão de uma cidadania que se tornou, para surpresa de todos, inclusive dos próprios manifestantes, um ator de primeira grandeza na cena política do país.
O que desejam os “coletes amarelos”? No início, exigiam a revogação de uma taxa sobre os combustíveis, um ônus para os moradores das regiões afastadas dos grandes centros urbanos. Cedo, contudo, agregaram-se outras reivindicações, entre elas, a da restauração do imposto de solidariedade sobre as grandes fortunas/ISF, abolido pelo governo, que incidia sobre os mais abastados. Surgiu também a proposta do referendo de iniciativa da cidadania: se uma proposta alcançasse 700 mil assinaturas, seria obrigatório submetê-la à consulta popular.
O governo reagiu com extrema violência aos protestos. Não sendo capaz de distinguir a minoria parasita que se preocupa apenas em quebrar e destruir, passou a reprimir sem distinção, batendo, lançando gás lacrimogêneo e atirando com os temíveis lançadores de balas de defesa a respeito dos quais se diz que “não são mortais, salvo quando matam”. O balanço é pesado: 12 mortos, 1.800 feridos, 5.339 prisões, e cerca de 90 atingidos pelas tais “balas de defesa”(segundo David Dufresne, cerca de 15 perderam um olho, sem contar os maxilares quebrados e as cabeças fraturadas). Do lado da polícia, registram-se centenas de feridos, o que mostra que muitos não estão dispostos a apanhar de braços cruzados.
Em meados de dezembro, frente à pressão que aumentava, o governo adiou a cobrança do imposto sobre combustíveis. Muito tarde. O movimento ganhara impulso, transformara-se em algo complexo, ampliando a pauta de reivindicações, disputado por diferentes correntes políticas, ombreando-se, nas mesmas manifestações, republicanos, social-democratas, revolucionários socialistas, nacionalistas e fascistas. É uma das incógnitas do movimento saber até quando isto poderá durar ou quem vai sair ganhando.
A maioria denuncia o sistema político e econômico como responsável por desigualdades sociais e pela exclusão política. Exigem a renovação da democracia e criticam políticos e tecnocratas que nem sabem como sobrevivem as gentes comuns, embora sempre protejam os poderosos em prejuízo dos que estão em baixo da pirâmide social.
Acuado, o governo fez novas concessões econômicas e convocou um grande debate nacional, com duração de dois meses, a partir de 15 de janeiro. Em todas as municipalidades, se abrirá uma discussão sobre quatro temas: sistema tributário, transição ecológica, serviços públicos e cidadania. Apostou-se que tais medidas canalizariam de forma institucional as reivindicações e levariam ao esvaziamento dos protestos.
De fato, as manifestações diminuíram de intensidade. As Ações VI e VII, em fins de dezembro e a Ação VIII, no começo de janeiro, registraram um certo refluxo, mas não desapareceram. E nos últimos dois sábados, 12 e 19 de janeiro, apesar do intenso frio, dezenas de milhares de pessoas voltaram às ruas, conferindo um novo dinamismo ao processo.
Como salientou Quentin Deluermoz, os coletes amarelos evidenciam uma crise de sociedade. Em face da imensa força dos grandes capitais, aprumam-se os que estão cansados de “apenas sobreviver”. Sentem-se humilhados, espremidos e ignorados. Ainda tateiam seus caminhos, pode ser que não os encontrem, querem, porém, a república para eles, como assinalou um cartaz: “ei, a república é também nossa, ou melhor, é sobretudo nossa!”
Daniel Aarão Reis, professor de História Contemporânea da UFF, email: daniel.aaraoreis@gmail.com