O infame trocadilho é só um pretexto pra começar o texto. Conheci Rodolfo em Cuiabá, no começo de 2016 (acho eu), e nunca trocamos mais do que algum cumprimento, mas sempre simpatizei com a figura de um cara que mostra os dentes a torto e a direito. Devo dizer que nunca vi “gente séria” perto dele. O título, enfim, se refere ao que acabamos de fazer: uma entrevista verbal (e virtual) que usa do verbo para falar a imagem.
As fatias de tempo do Rodolfo sempre chamaram minha atenção. Primeiro pela humanidade resgatada em seus personagens, que vão de amigos de adolescência a cães de rua, trabalhadores do interior da Espanha e completos desconhecidos trombados pela abafada capital mato-grossense, gente simples de alma pantaneira, mãos calejadas e olhos como poços de profundidade. Na minha tentativa de simplificar as coisas, percebo de imediato a complexidade de trabalhar com o que se é em essência.
“Não sei dizer exatamente o que eu sinto, eu sou isso. Tenho alguns amigos fotógrafos que fotografam, mas não vivem aquilo, trabalham, mas não vivem aquilo, eu vivo isso, eu sou isso, eu estou sempre com uma câmera na mão, eu penso fotografia, eu vejo fotografia o tempo todo. O meu sonho é viver fazendo retrato, me sustentar especificamente fazendo retrato.”.
A primeira influência foi o pai: de analógica na mão (assim como projeto que o filho deu início semanas atrás), registrava a infância de Rodolfo, festas e momentos em família. Durante o ensino médio comprou uma Canon T3 e teve acesso às primeiras referências, principalmente locais. Conheceu de perto o trabalho de Júlia Muxfeldt, então colega no IFMT, e mais tarde José Medeiros e Lucas Ninno, outros dois fotógrafos de vocação humanista e retratista. Entre esses dois períodos, Rodolfo conheceu pela Internet a fotografia de Mark Laubenheimer, retratista nova iorquino que exerceu forte influência na formação de seu olhar fotográfico.
“Acredito que a temática do retrato é aquela que vem lá da pintura. A pessoa sendo ela mesma no ambiente a que ela pertence. Costumo dizer que não é porque tem uma pessoa na foto que aquilo é necessariamente um retrato.”.
Entramos então numa problemática presente na vida de outros fotógrafos que dividem seu tempo e seu trabalho em mais de uma vertente, como o retrato documental e espontâneo, o ensaio fotográfico encomendado e os editoriais de moda. Trabalhos com métodos, objetivos e critérios diferentes mas que, na opinião do fotógrafo, se unem numa característica: pensar a fotografia em busca de sua essência.
A essência, essa aura que envolve as boas fotografias, surge de diferentes formas e precisa de um olhar atento e sensível para ser percebida. Pode ser imprevisível e aleatória como uma teia de acontecimentos que se atropelam e culminam no olhar vazio de um desconhecido, como pode surgir da confiança de um amigo que olha fixamente a objetiva e revela sentimentos que oculta até de si mesmo. O cineasta iraniano Abbas Kiarostami me ajuda a entender um pouco sobre a fotografia como um meio de organizar o mundo visualmente, ao dizer: “muitas vezes notei que não podemos ver o que temos diante de nós, a não ser que esteja dentro de um quadro.”.
“Quando estou na rua e faço um retrato de alguém, eu sinto medo, ao mesmo tempo tenho que ser rápido, mas é um medo que eu gosto pra caramba. O meu retrato favorito é de um cara que eu nunca mais vi na vida. Mas quando estou com alguém e eu tenho tempo, gosto muito de conversar e escutar as histórias, seja de algum amigo, conhecido, desconhecido, acho que no momento em que as pessoas contam histórias, elas estão sendo elas ou pelo menos uma parte delas, mas essa parte que ela mostra já é algo grandioso.”.
E das histórias que guarda na memória, uma delas tem lugar especial. “A da Dona Ilda foi um dia bem aleatório, eu peguei minha bike e fui andar pelo bairro fotografar, moro na periferia, no Três Barras, eu estava descendo uma rua e uma senhora subindo, ela me encarou e gritou ‘Ei, você é fotógrafo?’, eu disse que sim e ela ‘não fica andando com essa câmera nessa rua, aqui é muito perigoso’, nisso eu pedi para fazer um retrato dela, ‘estou cansada, trabalhei o dia todo e estou sem dormir, minha chefe me pediu para ficar a noite anterior também’, é uma historia que se repete em todo lugar e me fez lembrar da minha mãe, que no caso se parecia com ela, mulher negra, provavelmente solteira, minha mãe que se desdobrava, trabalhava o dia todo, lavava roupa pra ter uma grana a mais, mas outra coisa que me fez lembrar da minha mãe é que independente da situação, do sofrimento, ela estava sempre sorrindo e me fazendo feliz, foi essa a imagem que a Ilda me transmitiu, felicidade independente das merdas da vida.”
“Pelo histórico, fotografia é cara e até certo tempo as pessoas da periferia não tinham acesso a milhões de coisas, entre elas a fotografia, então quando você tem uma fotógrafa ou fotógrafo negro, é um passo do caramba! Quando a Maria Reis fotografa mulheres negras que passaram por transição capilar, é um trabalho do caralho, quando Deana Lawson fotografa pessoa negras em seu ambiente, também, porque são pessoas negras que possuem empatia com o objeto da fotografia, não é alguém de fora que estudou e o conhece, acho que nesse processo de acesso nós estamos ganhando espaço e o empoderamento está totalmente ligado a isso.”.
Filho da terra mais quente desse Brasil, de olho ligeiro e amante do rolê, que essas lentes alcancem cada vez mais pessoas e revelem do teu jeito único a doçura do momento fugaz, a agonia da espera solitária e as sombras e luzes de quem te encontra.
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