Os folhetins, tão fora de moda, ainda perduram. Não mais no rodapé dos jornais, nas alturas do rádio, nos rapapés da telinha. Mas nessa mistura de televisão e internet que encontra na Netflix o espaço ideal para a proliferação do fenômeno viciante das novas séries. Não falamos aqui de pessoas comuns que, por falta do que fazer, debruçam seus olhos magnetizados em roteiros inventivos dos quais não consegue se livrar antes de assistir a todos os episódios. Muitos escritores têm encontrado aí espaço para repensar suas obras, já que os níveis de tensão e criatividade são altos. Volta e meia um ou outro tenta me convencer de que preciso também provar dessa poção.

Os remakes continuam fazendo sucesso, Lady Gaga que o diga, a diva que agora é também atriz. Não importa o suporte sobre o qual se veicula o texto, a realidade escancara novas tecnologias e o caráter mutante da arte acompanha o fisiologismo da língua que se transforma, a quase tudo aceita, e segue em frente. E em meio a esse turbilhão chega-nos a notícia de que “Cem anos de solidão”, de Gabriel Garcia Marquez, está virando série também. Uns sopram para quem quiser ouvir que do túmulo ele vilipendia tal abuso; outros que deve estar honrado com a montagem; não importa.

Quem diria que da teia de onde se teceu Ruan Rulfo, Mario Vargas Llosa, Roa Bastos, Jorge Luis Borges, Ernesto Sábato, Carlos Fuentes, Julio Cortazar, Cabrera Infante e tantos outros mestres do fantástico, o escritor colombiano despontaria com um folhetim que promete peso para os “junkies” dessa nova mídia que, além de entreter, também traz o toque de Midas para o meio Cult? É claro que há uma demonização em torno disso. Os tradicionalistas se opõem, decerto com o argumento simplório de que isso é cultura de massa. É outra história!

Penso nessas questões por conta de uma obra que li recentemente e me lembrou um pouco a saga dos Buendia. Não que chegue perto, mas que traz um envolvimento emocional que envolve várias gerações da mesma família. Trata-se de “Arroz de Palma”, romance de Francisco Azevedo que comprei em um sebo na cidade de Vitória da Conquista, estado da Bahia, em janeiro passado. É sobre ele que gostaria de escrever um pouco; pois me lembrou em alguns aspectos (guardadas as devidas proporções) a construção romanesca de Garcia Marquez.

Publicado pela Editora Record, o livro traz na orelha um aviso sobre o que se pode esperar: “marcado por uma escrita lírica, delicada, que emociona e comove. As mudanças sociais e culturais do Brasil também podem ser percebidas por quem acompanha os cem anos da história desse clã…”. Dramaturgo, roteirista, poeta e ex-diplomata, o carioca nascido em 1951 já tem seu livro traduzido em vários países europeus, além dos Estados Unidos da América do Norte. A narrativa é tipicamente carioca, com exemplos que são da cultura da cidade do Rio de Janeiro. Como ao citar um prato típico da culinária da capital fluminense, presente nos cardápios de bares e lanchonetes que atendem a vários bolsos:

O pior é que ainda tem gente que acredita na receita da família perfeita. Bobagem. Tudo ilusão. Não existe “Família à Oswaldo Aranha”, “Família à Rossini”, “Família à Belle Munière”, ou “Família ao Molho Pardo” – em que o sangue é fundamental para  o preparo da iguaria. Família é afinidade, é “à Moda da Casa”. E cada casa gosta de preparar a família a seu jeito (AZEVEDO, 2014, p. 13).

File à Oswaldo Aranha é um prato carioca. A narrativa se faz cosendo elementos da culinária à escrita, o que se observa em pequenos detalhes. O campo semântico é recheado de bordões poéticos que entalham no espírito do leitor o cheiro do fogão, da comida fresca de uma metalinguagem envolvente. “Fecho as aspas, tampo a panela. Cismo, escarafuncho” (idem, p. 34). Há uma sabedoria profunda por trás dessa escrita. Um sem número de inferências que cabem em qualquer família. Não há como ficar indiferente ao que se lê. Trabalho agora com períodos curtos, como tempero colocado aos poucos na panela, e mexendo bem. O fogo é brando. O molho é pardo.

Leitura que merece ser revisitada de tempos em tempos. Talvez daqui a uns anos eu volte a experimentá-la. Por hora, o melhor a fazer é viver da lembrança boa daquilo que ficou, a sensação de que é fluida, mas deixa marcas profundas, que sulcam a carne viva. “Família é prato que, quando se acaba, nunca mais se repete” (idem, p. 361). Ao escrever esta última frase, fico a pensar se não valeria a pena me dirigir ao buffet e me servir de mais um pouco. Paro. Penso. Vou repetir a leitura de novo, um dia. Mas o prato ora vazio ainda está na dúvida se vai atrás de um refil…

REFERÊNCIA

AZEVEDO, Francisco, Arroz de Palma. 10 ed. Rio de Janeiro: Record, 2014.

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Ao completar vinte anos da publicação de meu primeiro romance, fecho a trilogia prometida com este volume. Penso que esse tempo foi uma graduação na arte de escrever narrativas mais espaçadas, a que se atribui o nome de romance. Matrinchã do Teles Pires (1998), Flor do Ingá (2014) e Chibiu (2018) fecham esse compromisso. Está em meus planos a escritura de um livro de ensaios em que me debruço sobre a obra de Ana Miranda, de Letícia Wierchowski e Tabajara Ruas; o foco neste trabalho é a produção literária e suas relações com a historiografia oficial. Isso vai levar algum tempo, ou seja, no mínimo uns três ou quatro anos. Vamos fechar então com 2022, antes disso seria improvável. Acabo de lançar Gênero, Número, Graal (poemas), contemplado no II Prêmio Mato Grosso de Literatura.

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