O racismo estrutural permeia todas as relações sociais brasileiras, evidenciado e escancarado nas desigualdades marcantes de raça e gênero. Em todos os setores e segmentos, o racismo está presente. Não seria diferente no cinema. A supremacia branca no audiovisual não se restringe apenas ao que se exibe na tela, mas se reproduz nos bastidores, na produção, em quem está atrás das câmeras. Essa construção é responsável por silenciar as diversas narrativas dos verdadeiros protagonistas de suas histórias. É sobre essa perspectiva, que a cineasta Sabrina Fidalgo, discorre em entrevista para o Cidadã(o) Cultura.
Com seus filmes exibidos em festivais ao redor do mundo, aclamados e premiados, Sabrina Fidalgo foi apontada pela publicação americana BUSTLE como uma das cineastas mas promissoras em uma lista com 36 diretoras internacionais. Seus últimos curtas-metragens, Rainha e Alfazema, revelam seu comprometimento em trazer a representatividade real do Brasil – especialmente por se tratar do olhar de uma mulher negra.
Em artigo para o Huffpost Brasil, Sabrina Fidalgo fala sobre o roubo das narrativas: “De uns tempo para cá (pouquíssimo tempo, é bom lembrar) o cinema brasileiro, por exemplo, tem entregado filmes de curtas e longas-metragens com elencos compostos por uma maioria de atores e figurantes pretos, mestiços e indígenas. E não só isso. Para além da ampliação do protagonismo de raça na frente das telas há também os filmes com protagonismo de mulheres cis e trans. E voilá! Nossos problemas parecem estar resolvidos em se tratando de democratização da diversidade nas telas. Mas, infelizmente, não é bem assim.”
A cineasta ressalta que à frente desses projetos estão os mesmos personagens de sempre: homens brancos, ricos, hétero cis. Ela continua: “Parece que o “mercado” finalmente entendeu esse “filão” da “diversidade”. E que bom. Mas a pergunta que não quer calar é: diversidade para quem? E sob qual ponto de vista mesmo?”.
Para ocupar esses espaços e trazer mais conteúdo dirigido, produzido e estrelado pelas ditas “minorias”, Sabrina Fidalgo cita a iniciativa do Trace Brazuda, o primeiro canal afrourbano do Brasil, que estreia neste sábado (25/07) com uma mostra de filmes da cineasta, começando com Rainha às 19h30.
– Como começou o seu envolvimento com audiovisual? O que te impulsionou nessa direção?
Meu envolvimento indireto com o Audiovisual começou desde sempre por consumir televisão, novelas, séries, esse tipo de coisa. Em relação ao cinema, a sétima arte mesmo, começou também muito cedo, através do meu pai, que era um grande cinéfilo e me levava muito aos cinemas. A minha lembrança mais remota é de ter ido a uma sala de cinema. Acho que tinha uns 5 anos de idade e desde então passou a ser uma atividade constante ir ao cinema com meus pais, e assistíamos muitos filmes em casa. Sempre tivemos essa cultura de assistir filmes juntos. Meu envolvimento direto começa na Alemanha. Eu comecei a estudar cinema, um curso de documentário e filme, na escola de TV e Cinema de Munique, primeiro como aluna ouvinte. Lá comecei a me envolver nas produções da escola, em várias funções: assistente de produção, trabalhei com consultorias de projetos, fui fazendo de tudo um pouco, até ter a oportunidade de fazer meu primeiro curta em 2006. O primeiro curta que dirigi e realizei foi o Sonar 2006 – Special Report. O que me impulsionou nessa direção foi o incentivo de casa mesmo, desde sempre tive muito contato com o audiovisual, com cinema. Meus pais são pessoas do teatro, tinham uma companhia de teatro, o Teatro Profissional do Negro (T.E.P.R.O.N), Ubirajara Fidalgo, um dramaturgo negro, e Alzira Fidalgo, produtora negra, essas pessoas cinéfilas, me apresentaram o cinema.
– Fazer arte no Brasil é um desafio, especialmente no setor audiovisual que envolve inúmeros profissionais e diversas frentes de trabalho. Há pouco ou nenhum incentivo, tanto público quanto privado, e dificuldades que vão desde a captação de recursos até a distribuição dos filmes. Qual é a sua percepção da produção audiovisual brasileira? É possível fazer cinema no Brasil sem recorrer ao Fundo Setorial do Audiovisual/Ancine?
A minha percepção da produção audiovisual brasileira é muito crítica. É uma produção que sim, claro, obviamente, tem filmes maravilhosos, mas, que em sua maioria, tem uma produção muito grande que não representa a maior parte da população do Brasil. Por conta disso, acabam sendo conteúdos que não dialogam com uma realidade cultural, sobretudo, e que também apontam muito para esse lugar de uma supremacia branca. A partir do momento que temos a maior parte das produções, com um contingente enorme de pessoas brancas, atuando tanto na frente quanto atrás das câmeras, chegamos nessa conclusão, que são produções muito problemáticas. Sem representatividade, são produções que acabam, de alguma forma, dialogando com uma ideia racista, de supremacia branca.
Eu acho que é possível fazer sem depender da Ancine. É uma oportunidade da própria indústria se repensar e é uma chance de entender essas novas possibilidades e novos mecanismos de fomento ao cinema. E mecanismos que não tenhamos que, necessariamente, ficar dependendo de uma só estrutura, via dinheiro público. É claro que lamento o Fundo Setorial estar parado, mas, por outro lado, acho que nesses anos todos o FSA privilegiou uma pequena parcela da população. Não me sinto contemplada nesse lugar. Nem eu e nem os cineastas, produtores e produtoras, que têm representatividade, pessoas negras, indígenas, e mestiças, fora do eixo Rio-São Paulo.
– Em artigo publicado no Huffpost Brasil, você discorre sobre a luta antirracista e o impulso global para envolvimento da branquitude a partir do caso emblemático do assassinato de George Floyd. Nesse sentido, aborda a necessidade da branquitude brasileira em assumir a sua responsabilidade para corrigir distorções históricas, resultantes de quase 400 anos de escravidão. Na sua percepção, como o país deve atuar para, de fato, garantir democracia às pessoas negras, que representam mais de 50% da população brasileira?
As pessoas negras representam 56% da população brasileira. É mais que a metade. Eu acho que o Brasil ainda está muito preso nesse racismo estrutural. É a vanguarda do atraso, em termos globais, nesse sentido. É um dos países mais racistas do mundo sim, é um dos países mais desiguais do mundo sim, e isso está ligado à questão racial, porque as pessoas mais pobres são as pessoas mais negras. É um país que não teve projeto de inclusão social depois de explorar por quase 400 anos essa população, que é a maioria.
A única possibilidade de atuação concreta é implementando mais cotas. Eu realmente não acredito muito que as pessoas que detêm poder vão naturalmente se conscientizar da importância da diversidade, da importância da inclusão social, racial e de gênero. Acho que só a partir da implementação de cotas, quando se tornar obrigatório, é que essa mudança, de fato, vai chegar. Assim como foi feito com as cotas nas universidades públicas, porque se não fosse assim não teríamos tido essas gerações, duas gerações, pelo menos, de pessoas negras, mestiças e indígenas formadas.
– Quais são os seus projetos futuros e como vislumbra a retomada da produção audiovisual nesse momento excepcional de pandemia que vivemos?
Meus projetos futuros são mais filmes. Estou com alguns projetos de longas-metragens em fase adiantada. Além desses projetos, tenho outros que estão em fase inicial de desenvolvimento. Esse momento excepcional de pandemia tem sido bem produtivo. Sei que muita gente tem tido bloqueios de criatividade e vários projetos caíram por conta dessa situação. Mas eu tenho tido oportunidade de trabalhar com equipes muito boas. Estamos tocando projetos mesmo nesse momento difícil. De alguma forma estamos encontrando soluções, aprendendo a usar a internet de maneira mais produtiva. Entendemos que essas outras janelas, como streaming, aplicativos de transmissão, as redes sociais, são janelas potentes. Estamos aprendendo a entender e lidar com essas novas possibilidades. Eu sou otimista.