Por Ramon Carlos*
Eu já sabia que tinha AIDS. Minhas calças ficaram folgadas, suava todas as noites e não conseguia dormir. Comia pouco e estava todo amarelo. Inicialmente pensei que tinha contraído nos milhares exames de sangue que fiz desde a infância, cerca de dois por mês. Nenhum médico me curava. Minha mãe rezava pela cura. Para não deixarem ela sem resposta, todos afirmavam ao verem meus exames:
– É anemia. Ele tem que comer fígado.
Receitavam alguns remédios, uma lista com alimentos ricos em ferro e marcavam o próximo exame de sangue. E sem brincadeira, devo ter ficado nessa por no mínimo dez anos. Era fígado a milanesa, fígado com limão, fígado com fígado, batida de fígado, suco de fígado, sobremesa de fígado, sorvete de fígado, bala de fígado. Meu pai sempre que podia fumava cigarros de fígado ao meu lado, o que de fato me transformava em um “fumante de ferro passivo”, e concordo, a expressão pode ter uma conotação maliciosa, mas dane-se, o escritor sou eu.
Passavam-se os dias até a próxima consulta, e lá estava o diagnóstico:
– É anemia. A senhora está dando fígado pra esse guri comer?
– Sim doutor – minha mãe dizia. – É fígado no café, no almoço e na janta.
– Tem certeza que não são fígados de animais alcoólatras?
– Sim. Sempre alerto o açougueiro.
– Estão fumando cigarros de fígado ao lado dele como receitei?
– Sim doutor.
– Muito bem. Vamos tentar outra coisa. Ao invés de usar sabonete, ele tomará banho com um pedaço de fígado durante o período de um mês.
– Fígado de porco ou de boi?
– Pro banho eu sugiro o de boi. O de porco sugiro como travesseiro, também pelo período de um mês.
– Tudo bem doutor. Ouviu filho? Boi no banho, porco na cama.
– Entendido – respondi.
Saímos do consultório e fomos direto para o açougue.
– Oi Tião – cumprimentou minha mãe. Preciso de um fígado de boi não alcoólatra, e um de porco, também não alcoólatra.
– Desculpe senhora – disse o Tião. Hoje só tenho fígados que vieram direto do AA (Animais Alcoólatras).
– Como assim Tião?! Meu filho não pode ficar sem banho e sem dormir hoje. Faz parte do tratamento dele.
– Espere um minuto. Vou ligar para o AA.
Tião pegou o telefone e ligou.
– AA, Giana, boa tarde.
– Boa tarde Giana, aqui é o Tião do açougue do Tião.
– Diga Tião.
– Recebi uns fígados aqui de vocês, e gostaria de saber se algum animal recuperou-se do vício antes de morrer?
– Só um minuto Tião, vou verificar a resposta com meu superior. Aguarde na linha por favor.
– Vai verificar com o superior – disse Tião para nós.
– Marcelo! Marcelo!
– Estou indo Giana.
…
– Fala meu amor.
– O Tião está aqui na linha perguntando se tivemos algum caso de reabilitação antes da morte dos animais que lhe enviamos a última carga de fígados.
– Sim, tivemos. Um boi e dois porcos não bebiam mais por no mínimo dois anos. Morreram sob nossa observação, por outras causas. Um porco cometeu suicídio, o outro morreu de orgasmos múltiplos e o boi, coitado, descobriu que era capado e morreu de tristeza.
– Quais eram os nomes deles?
– Tenório, Valente e Tibúrcio.
– Só um minuto Marcelo.
…
– Tião?!
– Sim?!
– Tivemos três casos de reabilitação, dois porcos e um boi. Tenório, Valente e Tibúrcio não bebiam mais por no mínimo dois anos. Morreram por outras causas.
– Morreram de quê?
– Um porco se matou, outro se perdeu na bronha e o boi foi de tristeza.
– De tristeza?
– Sim, tristeza. Descobriu que era capado.
– Como descobriu?
– Só um minuto.
…
– Marcelo, como o boi descobriu que era capado?
– Eu contei.
…
– Alguém contou Tião.
– Valeu Giana. Obrigado.
…
– Por que você revelou que ele era capado Marcelo?
– Porque o animal me chamou de corno e disse que era o pai da minha filha.
…
Tião explanou a situação. Minha mãe aceitou os fígados. Eu afirmei que os porcos sim sabiam morrer. Fomos pra casa, já estava escurecendo. Meu pai fumava um cigarro de pulmão na cozinha. Minha mãe ficou furiosa, “Você tem que comprar os de fígado, homem!” ela disse. Mas ele comprou aquele porque estava com dificuldades pra respirar. Fui ver TV enquanto a mãe colocava um pedaço do fígado de boi na saboneteira e trocava meu travesseiro pelo fígado de porco.
– Vai tomar banho! Ouvi logo depois.
Entrei no banheiro, liguei o chuveiro e enxaguei os cabelos. Após isso esfreguei a carne pelo couro cabeludo. Imaginei que após aquilo jamais ficaria careca. Foi um banho normal, a única diferença que sentia era quando passava aquela carne macia pelo genital. Não arrisquei lavar a bunda com aquilo, pois seguindo com as conotações maliciosas, meu rabo não precisava de ferro. Saí do banho e fui me vestir.
– Quer jantar? Ouvi da cozinha.
– O que você fez hoje mãe?
– Sopa de fígado pra ti.
– Sim. Já estou indo – respondi.
Na hora de dormir fiquei na dúvida se aquele travesseiro novo era do porco suicida ou do masturbador solitário. Fiquei na dúvida. Após os trinta dias de tratamento e mais um exame de sangue retornamos ao mesmo médico.
– Não pode ser – ele disse.
– O que foi doutor? Perguntou minha mãe.
– Esse guri não melhora nunca. Fizeram exatamente o que mandei?
– Nada diferente do que o senhor mandou.
– Bem, só me resta uma última tentativa. Ele terá que comer pregos.
Depois desse dia toda minha alimentação mudou. Virou prego à milanesa, prego com limão, prego com prego, batida de prego, suco de prego, sobremesa de prego, sorvete de prego, bala de prego. Meu pai até que tentou acender alguns pregos ao meu lado. Aquela coisa de comer prego e cagar parafuso não funcionava comigo. Eu sabia que estavam me tratando de alguma coisa, mas nem imaginava o que era anemia. Um tempo depois dessa dieta fui fazer mais um exame para a próxima consulta.
– Desisto – disse o médico.
– Nada mudou doutor? Perguntou minha mãe.
– Absolutamente nada.
– O que podemos fazer pelo meu filho?
– Sinto muito senhora. É um caso perdido.
Minha mãe não desistiu e foi novamente à procura de outro médico. Levamos todos meus exames. Ele era descendente oriental, usava óculos e aparentava ter mais anemia que eu pela cor. Esse médico ia analisando a pilha de exames sem mexer um nervo do rosto.
– Esse garoto nunca será curado da anemia! Por fim declarou e gargalhou.
Aceitei com minha cara amarela o veredito. O que seria anemia?
– Não me diga uma coisa dessa doutor. Vou fazer esse guri comer uma patrola se for preciso.
– Esse garoto pode comer pregos pela vida inteira e nada vai mudar! Hahaha.
– Como não?!
– Minha senhora, teu filho nasceu com Talassemia.
Não perderei tempo explicando minha doença hereditária. Acontece que eu sabia que tinha AIDS. Aquelas malditas putas não esterilizavam as agulhas ou teriam sido aquelas outras malditas putas? Não importava. Feridas amadureceram perto do pênis. Talvez não fosse AIDS, apenas alguma DST qualquer, mas logo as feridas sumiram, e novamente eu tinha AIDS. Suei por inúmeras noites, até que finalmente decidi fazer o exame.
Minibiografia
Ramon Carlos (Santa Catarina, 1986). Escreve no site: www.estrAbismo.net. Sua carreira literária resume-se a dois contos publicados em uma antologia, além de materiais diversos em revistas como: Mallarmargens, InComunidade, LiteraLivre, Subversa, Philos, Escambau, Bacanal, Ruído Manifesto, Literatura & Fechadura e Jornal Plástico Bolha.
Jardel Miro Dantas de Souza
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