Larissa Campos

Talvez a vida seja uma breve sucessão de amores e desamores. Não pude deixar de pensar sobre isso quando abri a caixa de madeira, há tempos esquecida no guarda-roupa da minha mãe. Eu havia decidido passar o fim de semana na casa dela e ajudá-la em algumas tarefas de organização de roupas e outras coisas. Na caixa de madeira, o recorte de jornal amarelado me fez lembrar um amor antigo.

“É tetra!”, dizia o título da matéria de jornal. Na mesma página, uma foto em grandes proporções mostrava o jogador Romário agarrado à taça dourada. De posse daquele registro, revivi acontecimentos de 1994. Faltavam poucos dias para a final da Copa do Mundo de Futebol e minha família estaria reunida para assistir ao jogo entre Brasil e Itália. Eu tinha seis anos de idade e um amor incondicional pelo camisa 11 da Seleção Brasileira.

Não consegui esconder a surpresa quando meu pai aproveitou o silêncio e tranquilidade do almoço para sentenciar: “Ninguém da nossa família vai torcer pelo Brasil na final!”. Ele limpou a boca no guardanapo de papel, levantou da mesa e caminhou até o quarto onde dormia. Minutos depois, voltou com uma tampa de garrafa de refrigerante na mão.

“Olha o que tá escrito na tampinha”, disse meu pai, enquanto eu forçava os olhos para enxergar as letras pequenas: 1º Itália, 2º Brasil, 3º Suécia. Antes que qualquer pergunta fosse feita, ele explicou: “Você sabe o que isso quer dizer? Que esta tampinha pode nos tornar milionários. Só precisamos torcer pra Suécia derrotar a Bulgária e a Itália vencer o jogo contra o Brasil”.

Os assuntos do momento eram a Copa do Mundo e a promoção da Coca-Cola. A empresa havia colocado no mercado garrafas com tampas que traziam combinações dos três primeiros colocados no campeonato. Ganharia a premiação quem tivesse em mãos uma tampinha com os nomes das três equipes que alcançassem o pódio. Não lembro de outros detalhes, mas sei que o decreto imposto em nossa casa dizia: proibido torcer para o Brasil. O problema é que eu tinha um amor e ele jogava na seleção brasileira.

Meu pai já fazia planos com o dinheiro. Um dia antes da final, a Suécia ganhou da Bulgária, conquistando o terceiro lugar. Com isso, os sonhos se intensificaram. Casa de campo, viagem para a praia, carro do ano e mudança de cidade. O plano parecia perfeito, a grande chance para que a família tivesse, entre outras coisas, a sonhada casa própria.

Assistimos a final no restaurante que meus avós administravam na época, um simples restaurante de posto de gasolina, beira de estrada. A família toda decidiu se reunir naquele lugar, especialmente porque a televisão era maior. Apenas meu pai, mãe, irmã e eu sabíamos que o resultado daquele dia poderia mudar as nossas vidas. As outras pessoas faziam cara de espanto toda vez que ouviam meu pai gritar a favor da Azzurra. Houve quem se incomodasse tanto a ponto de sair de perto dele.

Cada vez que a bola chegava aos pés do Romário, a vontade de gritar me invadia. Numa das vezes em que ele chutou a gol, me levantei da cadeira e bati palmas. O olhar furioso do meu pai me jogou imediatamente de volta ao assento, onde eu fazia o possível para me conter. Naquele dia, nossos nervos foram testados: a partida terminou em zero a zero, não houve gols na prorrogação, o título se decidiu nos pênaltis, pela primeira vez na história das Copas do Mundo.

Quando o chute decisivo do italiano Roberto Baggio passou por cima da trave, lágrimas caíram dos olhos do meu pai. Tomado pela raiva, ele jogou a tampinha longe e começou a dar murros cheios de lamento na mesa de plástico a sua frente. Ao redor, as pessoas bebiam e gritavam. Sem condições de suportar a cena, ele foi para o carro, um fusca verde 83, acalmar os ânimos. Não aceitava ter passado tão perto da riqueza, olhado em seus olhos e não desfrutar de tudo o que ela podia oferecer. “Uma chance dessa só se tem uma vez na vida”, ele repetia.

Me juntei aos outros na comemoração. Vinte e seis anos depois, o pedaço de jornal repousa em minhas mãos, me fazendo lembrar o dia em que quase ficamos ricos e precisei disfarçar um amor do qual eu nem me lembrava mais, um amor sucedido por tantos outros em 32 anos de vida. Para minha sorte, tudo acabou bem. Continuávamos pobres, é verdade, mas o Romário estava em todos os canais de televisão, agarrado à taça tão desejada. Diante daquela cena, a promoção se tornou um pequeno detalhe.

Em tempo: Anos depois do tetracampeonato, li uma notícia sobre a promoção da Coca-Cola. Ao contrário do que muitos pensaram na época (inclusive meu pai), a tampinha vencedora não era tão exclusiva assim, o prêmio teve que ser dividido entre milhares de ganhadores. Saber que eles receberam pouco mais de cinquenta reais me tranquilizou. O meu amor pelo Romário valia muito mais.

 

Larissa Campos é jornalista, escritora e podcaster. Vive em Cuiabá-MT.

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