Por Luiz Renato de Souza Pinto*

Quando iniciei no ensino superior como docente, ao final de 2001, tive contato com muitos autores e obras já conhecidos, mas ainda não investigados como objeto de análise e de estudo. À época observei nas listas de presença de turmas que se sucediam o número excessivo de pessoas que levavam nomes de santos; não eram quaisquer santos, mas sim, os que são bastante populares na baixada cuiabana. Gonçalos, Gonçalinas, Beneditos e Beneditas saltavam aos olhos, “tchumas de gente”! Lembro-me que Antonio Sodré, nobre e saudoso amigo fez parte de uma banda com o nome de “Os Beneditos”, ao lado de Glaucos e não sei mais quem, nesse período eu morava no Rio de Janeiro, ou em Cabo Frio, não me recordo bem.

saobenedito_620x465São muitos os devotos de São Benedito e entre eles um dos grandes nomes da poesia modernista em Mato Grosso, Benedito Sant´Ana de Silva Freire. Acostumei-me a ler seus poemas, mas a relação com a Geografia, com o espaço urbano, é recente. Talvez pela primeira vez tenha sido via artigo publicado em forma de capítulo de livro em Os mapas da mina, coletânea organizada por Mario Cezar Silva Leite. A autora observa que “Silva Freire utiliza diversos recursos técnicos como o geometrismo, a repetição, o jogo de palavras, neologismos e mini-poemas. Trabalha em blocos de palavras resultando em uma poesia dinâmica, criadora e expressiva do contexto social vivido” (ROMANCINI, s/d, p. 184).

Considero importante para o conjunto da literatura de Mato Grosso a seleta de prosa e verso em que Silva Freire figura ao lado de Manoel de Barros, Wlademir Dias Pino, Lucinda Persona, Ivens Scaff e Ricardo Guilherme Dicke. A obra traz elementos contundentes da literatura produzida sob o calor de Cuiabá. E esse olhar citadino está presente, logo em seu primeiro poema do Benedito:

silva freire-Não, Cuiabá, não são as crianças quem lhe sangram de agulhas envenenadas a veia jugular da vida…

– Não são elas quem lhe entopem as flautas da respiração…

-Quem enforca seu sono-sonho com gritos  de – assalto!, não suas crianças…

– Quem encaixota sua qualidade de vida, não são as crianças.

(… )

(SILVA FREIRE, 2003, P. 41).

O poema discorre sobre as (i) responsabilidades dos agentes públicos na condução da máquina pública e é importante lembrarmo-nos disso às vésperas de mais uma eleição. O poeta insiste:

– As crianças são o futuro-interior da comunidade, e vão pedir contas à história.

-Oh, “seu” Delegado!, “seu” Fiscal, “seu” Secretário, sr. Prefeito, Guarda Civil, Chefes, Chefes, tantos Chefes!,

– a posse da cidade não é posse da função!

(SILVA FREIRE, 2003, P. 42).

expoA exposição “Olhar Cuiabá – cartografia silvafreireana” materializa pelas lentes de Mari Gemma de La Cruz essas filigranas. O percurso urbano da região central reproduzido no chão da Galeria Lava Pés proporciona ao passante pisar no chão metaforizado pela fusão de imagens e palavras representativa desse amálgama. Poemas que atravessam o Minhocão a parir novos sentidos pelas paredes, pelo chão bruto da poesia; mito e lenda na fusão sincera da imagem e da palavra no mesmo espaço, sem comandos no estabelecimento de sentidos.

Silva-Freire-BibTribunal

“- talvez até porque:

– de suas sombras ambíguas

Mínimos de luz

Perfuram silêncios cáqui…”

(SILVA FREIRE, 2016, p. 9).

Bem Bem, Jejé, já já o tempo passa e tudo o mais vira memória, lembrança, esquecimento que a palavra ao vento torna escassa, mas que a fotografia tenta registrar com seus instantâneos de momento, seu descritivismo que a lente capta, registra e expõe aos nossos olhos sofridos pelo massacre do Candieiro, pela destruição de nosso patrimônio histórico material, que apela pela sobrevivência e que o imaterial não pode salvar. Mimoso, como filho de Mato Grosso, como pai, mas como poeta, de um mimo arvorado em palavra grossa, bruta, feito ganga, pedra canga salgando a pele das palavras de um sem-conta. A exposição invade os olhos sem pedir licença. A cartografia apresenta o centro velho com suas ruas esquisitas, de nomenclaturas antiquadas, mas que representam o tudo de um tempo que se vai distante.

gemma 2Não há mais rua de baixo, nem do meio, nem de cima; acima de tudo, não há mais o espaço romantizado que a poesia guarda. Não há mais, dona Leila; onde o Bugrinho, Daniela? A pós-modernidade, modernidade líquida, ou a decolonialidade, Larissa, onde tudo isso sem a poesia das ruas, nas ruas, de que ruas estou falando?

Que a perda das palavras não seja mais uma imposição do avanço dos tempos. A ditadura do olhar não me devorou os ouvidos, apenas uma otoesclerose tem me dificultado um pouco mais. Mas não demos ouvidos a tudo o que nos falam. Pior que o escutar ou o não escutar é o olvidar!!.

REFERÊNCIAS

ROMANCINI, Sonia Regina. Leituras do cotidiano urbano em Silva Freire. In: Mapas da Mina: estudos de literatura em Mato Grosso. Cathedral, s/d.

SILVA FREIRE, Benedito S. Canto-murmúrio para minha cidade. In: Fragmentos da alma mato-grossense. Cuiabá: Entrelinhas, 2003.

________________________. In: Olhar Cuiabá. Cartografia silvafreireana. Exposição fotográfica de Mari Gemma de La Cruz.

*Luiz Renato de Souza Pinto é poeta, escritor, professor e botafoguense em ascensão!

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Ao completar vinte anos da publicação de meu primeiro romance, fecho a trilogia prometida com este volume. Penso que esse tempo foi uma graduação na arte de escrever narrativas mais espaçadas, a que se atribui o nome de romance. Matrinchã do Teles Pires (1998), Flor do Ingá (2014) e Chibiu (2018) fecham esse compromisso. Está em meus planos a escritura de um livro de ensaios em que me debruço sobre a obra de Ana Miranda, de Letícia Wierchowski e Tabajara Ruas; o foco neste trabalho é a produção literária e suas relações com a historiografia oficial. Isso vai levar algum tempo, ou seja, no mínimo uns três ou quatro anos. Vamos fechar então com 2022, antes disso seria improvável. Acabo de lançar Gênero, Número, Graal (poemas), contemplado no II Prêmio Mato Grosso de Literatura.

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