Por Ramon Carlos*

Eram nove horas da noite, ou quase isso, perto disso, pela escuridão do quarto imaginei nove horas, mas não eram. Eu já dormia exaurido, sonhava que estava morto, mas, ainda acordado movia os olhos. Morto e pelado, no próprio colchão, tentava descobrir como havia morrido nu. Sinais. Chovia muito e uma goteira acertava minha testa em cheio. A gota descia pelo nariz e contornava a boca. Uma gota quente, mais sinais. Descia pelo meu peito cabeludo e entrava em meu umbigo. Doía, mas eu estava morto, pelado e molhado. Mais uma gota na testa percorrendo o mesmo caminho. Mais dor, mais morte, mais sinais. Menos com menos é menos negativo? Não, é mais, eu disse.

O telefone tocou, imaginei que eram nove horas, ou perto disso. Bebi algumas antes de deitar, ou melhor, bebi deitado antes de dormir, e essa talvez fosse a explicação de estar pelado, molhado e morto. Pensei: Se for deus estou ocupado, se for o diabo estou bêbado. O som do aparelho sacudia meus pés toda vez que cantava, como vibrações de orgasmos caindo do teto. Com um poder rasgado em meu túmulo, percebi que nem deus, nem o diabo insistiriam tanto em falar comigo. Mais uma gota na testa, mas essa nem percorreu meu corpo, ficou zanzando sobre minha cabeça, alfinetando como agulhas de acupuntura da grossura de um prego 18×36. Sinais e sons. Finalmente consegui atender.

– Sim – falei.

– Sim o quê? Ela perguntou.

– Sim, morri.

– Estou grávida.

– Por quê?

– Está bêbado?

– Não, morto.

– Fiz o teste hoje pela manhã. Dois risquinhos. O filho é seu.

– Não é.

– Só dei pra ti esse mês.

– Não deu.

– Vai assumir?

– Sim.

– Está com medo?

– Menos com menos é menos negativo.

Não ouvi mais nada.

Acordei pelado e com dor de cabeça. Tomei um omeprazol e uma dipirona. Achei minha cueca sobre a tampa do vaso sanitário, ao lado de um rolo de papel higiênico perto do fim. Coloquei-a. Preparei-me para o trabalho, calça, sapato e a camiseta da empresa, que pega fogo sozinha. Quando acendi um cigarro na porta, ouvi o telefone. Não atendi. Suei e fedi o dia inteiro. Voltei pra casa para um perfeito banho gelado. Senti meus mamilos duros e brinquei com eles, cutucando-os com o dedo indicador da mão direita. Lavei principalmente minhas virilhas. Exaurido novamente deitei para dormir um pouco, era quase sete horas da noite, ou quase isso pensei, pela claridade do quarto, mas não era. Conferi, vestia uma cueca, então fechei os olhos.

Não sei quanto tempo passou até ouvir batidas na porta, lentas como páginas viradas. Conferi, ainda estava de cueca, levantei-me e fui ver quem era. A chave está sempre jogada em um pote com moedas e um frasco de omeprazol. Tomei uma pílula sem água. Toc….Toc…..Toc. Gub, gub, engoli com dificuldade, pensei que o remédio pudesse ter ido parar em algum pulmão, então seria o fim da minha azia asmática. Abri a porta com uma moeda, eu tinha engolido a chave. Sem sinais por enquanto. Quem batia era uma criança com a cara borrada. Olho para o céu, vejo nuvens brancas estáticas, todas no mesmo formato.

– Gostosuras? Pergunta a criança.

Tenho uma bala de banana na mão, lhe entrego. Sinais. É uma menina, como eu sei? Eu não sei.

– Gostosuras? Ela continua.

– Menos com menos é menos negativo – lhe digo.

– Não, é mais – ela corrige.

Dou-lhe outra bala de banana. Odeio balas de banana.

– Por que você tem cara de sabonete? Pergunto.

– Porque o mundo é sujo – ela responde e some.

Tranco a porta com uma pílula, pois engoli a moeda. Volto ao colchão e deito, ainda estou de cueca. O telefone toca. Não sei que horas são. Deduzo que estou louco, e loucos não se importam com as horas. Eram dez, pelo menos quase isso, podia apostar uma bala de banana, mas não tinha mais, nunca tive. Pensei: se for deus é engano, se for o diabo é a cobrar. Levanto o braço direito e alcanço o interruptor, ligo, desligo, ligo, desligo, nada muda. Vivia tanto no escuro que nem percebia quando faltava luz. Encontro o telefone, antes de atender confiro, estou de cueca.

– Alô – atendo.

– Te liguei hoje de manhã, mas não atendeu – ela diz.

– Ninguém me ligou. Ninguém me liga.

– Eu liguei.

– Não ligou.

– Tenho certeza que liguei.

– O que você quer? Pergunto.

– Prefere menino ou menina?

– Menina.

– Por quê?

– Porque o mundo é sujo e menos com menos é mais.

– Vai assumir?

– Vou, porra!

– Você será um péssimo pai. Pelo menos é bonito, quero teus olhos no menino e minha bunda na menina.

– Que horas são?

– Quase dez.

– Sabia. Ganhei a aposta.

– Qual aposta?

– Bobagem. Quero saber. Quem é você?

Não ouvi mais nada.

Acordei bem disposto. Pus minha calça, meus sapatos e minha camiseta da empresa com um bordado na parte esquerda no peito, em círculo, verde e branco. Quase esqueci do omeprazol, mas lembrei-me ao catar a chave no pote. Juntei algumas moedas para comprar cigarros, a carteira pesava e fazia sons a cada passo, como se eu tivesse uma capelinha de santa na bunda. Trabalhei como sempre, suando e encharcando a cueca e a camiseta. Antes de voltar pra casa fui ao banheiro da empresa. Passei lentamente o dedo indicador da mão direita nas minhas duas virilhas e cheirei. Absurdo. Um banho gelado seria perfeito. Em casa, após quarenta minutos de caminhada, abri as duas únicas janelas fechadas, a do banheiro sempre fica aberta parcialmente. Tirei minhas roupas e larguei em uma bacia branca embaixo do tanque para lavar algum dia doravante. Afastei uma cortina e me posicionei embaixo do chuveiro, girei a torneira até o fim aguardando a mais gelada das águas. Esperei por uns segundos, olhei pra cima, olhei para a torneira, conferi se havia girado toda. Fechei-a e girei toda novamente. Olhei pra cima e nada. Sem água. Passei novamente meu dedo indicador da mão direita pelas virilhas e cheirei. Que absurdo feder assim. Fui até a geladeira e ao abrir a porta acendeu-se a lâmpada, iluminando poucas coisas, mas entre elas, uma garrafa plástica de um litro e meio, com água pela metade. Agarrei-a e voltei para debaixo do chuveiro. Esfreguei o sabonete pela virilha direta e depois, com a mão esquerda em forma de concha cheia de água gelada, derramei e fiz espuma na virilha. Fiz isso também na virilha esquerda, nas axilas e entre as nádegas. Sequei-me e deitei no colchão. Sobrou em torno de oito goles de água na garrafa, podia apostar na quantidade, mas iria perder. Decidi tirar um cochilo. Não conferi a cueca pois decidi dormir pelado. Meu pau endureceu algum tempo depois. Eu estava com o lado direito do corpo apoiado no colchão, minha mão direita segurava belos cabelos longos e castanhos ondulados, minha mão esquerda suspendia uma deliciosa perna esquerda pela dobra do joelho. As vibrações não caíam do teto, emanavam dos genitais siameses em forma de calor e vida. Sinais. Sua bunda corpulenta amaciava o impacto dos nossos corpos cobertos de suor e luxúria. Eu sentia que pegaria fogo dentro dela, meu pau seria cremado sem cerimônias e orações, ou morreria enterrado em uma caverna vulcânica com a lava das deusas promíscuas. Uma sincronia de átomos, beirando o colapso explosivo da carne crua.

– Quanto é menos com menos? Perguntei.

– Menos com menos é sua porra dentro de mim – ela respondeu.

Sinais. Não ouvi mais nada.

O telefone tocou e me acordou no outro dia, vinte minutos antes do horário normal que acordava para ir trabalhar, vinte, ou quase isso.

– Alô – eu disse.

– Oi – ela disse. – Te acordei?

– Sim.

– Me desculpe. Estou com saudades. Faz uns quatro dias que não te vejo. Ando ocupada com meu curso de acupuntura e meu trabalho. Como você está?

– Estou bem.

– Será que podemos nos ver hoje?

– Podemos.

– Esteja aqui as 20:00 hoje. Tenho uma surpresa.

– Está grávida?

– Claro que não, seu besta.

– Estarei aí as 20:00.

Teria que engravidá-la, eu amava a mulher.

 

Ramon Carlos (Santa Catarina, 1986). Escreve no 
site: www.estrAbismo.net. Sua carreira literária 
resume-se a dois contos publicados em uma 
antologia, além de materiais diversos em revistas 
como: Mallarmargens, InComunidade, LiteraLivre, 
Subversa, Philos, Escambau, Bacanal, Ruído 
Manifesto, Literatura & Fechadura e 
Jornal Plástico Bolha.

 

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