Por Santiago Villela Marques*

Montaigne disse que filosofar é aprender a morrer.

Por isso, fiz Letras. Em certos assuntos, não tenho pressa de me diplomar. E acho que meu Lattes tem mais valor sem um certificado de óbito.

O que não impede que eu pense, uma vez por ano, na morte. Afinal, temos um dia por ano para pensar em muitas coisas: um dia por ano para pensar nas mulheres; um dia por ano para pensar nas crianças; um dia por ano para pensar nos negros; um dia por ano para pensar na república; e – por que não? – um dia por ano para pensar nos mortos. São datas de purificação pela negligência nos outros 364. Como aquele cristão, que se prepara o ano inteiro para a confissão do Natal. “Padre, me perdoe, porque pequei…” E desenrola a lista, cuidadosa e esmeradamente produzida ao longo do ano, para culminar num emocionado instante de arrependimento natalino: “Padre, eu traí minha mulher e minhas duas amantes; roubei do meu sócio, na divisão da propina; escravizei trabalhadores e chamei de trabalho livre porque aboli o uso da bola de ferro; votei contra o impeachment do Temer; comprei o DVD das Coleguinhas…” Trezentos e sessenta e quatro dias de sacanagem para um dia de perdão. Nem agronegócio dá lucro tão alto.

Ora, com os mortos, não agimos diferentemente. Afinal, se traímos os vivos, por que não os defuntos, que reclamam menos?

É assim que os brasileiros, arduamente, pelejamos, dia a dia, pelo ano afora e adentro, para garantir o punhado de mortos a homenagear com coroas e obituários no dois de novembro. Como esta coluna pretende chegar até àqueles que sofreram dificuldades no processo de alfabetização, vou utilizar o vocabulário neoliberal. E dizer que o Brasil desponta entre os maiores investidores do segmento: fabrica, ao ano, mais de 400 mil mortos por falha ou falta de atendimento na saúde, e 60 mil mortos por homicídio, mais da metade com colaboração do tráfico, que também coopera na produção de cerca de 10 mil mortos por consumo de drogas. Sem falar nos 7 milhões de pessoas ainda ameaçadas pela fome, no país. Tudo isso, para ter o que fazer no feriado santo de novembro: lavar túmulo, encher vasos, entoar ladainhas, cumprir votos, dar notícias frescas ao defunto embolorado. Para o neoliberal: manter a saúde financeira da indústria de flores e velas. E mostrar como tratamos bem os nossos mortos.

Os vivos é que morrem de inveja.

Vai ver, é por isso que a maioria comemora o Finados: vingança. Emporcalhamos as lápides com umas flores murchas e fuligem de velas, para que pese sobre a cova do outro o que ele nos faz pesar na alma.

Deprimi.

Ainda bem que hoje tem capítulo novo de The walking dead. Pelo menos, esses mortos ainda sabem protestar.

*Santiago Villela Marques, mora em Sinop, dá aulas na Unemat, é poeta e escritor. 
Suas palavras dizem por si. Blog dele: http://santiagoarteiro.blogspot.com.br/

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