Amanda Helena

Sou uma mulher esquerdista, raulseixista, feminista,  e que uns desavisados já me chamaram de mulherão. Rejeito esses rótulos, principalmente a medida em que me pego praticando coisas inconfessáveis, realmente não sou nada disso. Agora, por exemplo, me ocorre de criar mais um grupo de apoio a dependentes.

Relutei em escrever um texto para confessar minha dependência. Não, eu uma mulher feminista, esquerdista e raulseixista, custei a acreditar que deixei me levar por essa fraqueza. Empoderadas rirão de mim, me expulsarão das conversas de roda, do planejamento da revolução das sandálias de couro.

A gente jura que é forte, trabalha, cria filhos, estuda, debate teorias, carrega bandeiras, mas todas estamos sujeitas a furtar a casa da própria mãe e sentir-se desolada quando  descoberta.

Como pode uma mulher que defende a ciência nas redes sociais, que acredita em profissionais de saúde mental, cair numa enrascada dessa?

Hoje mamãe brigou comigo e me colocou pra pensar, foi humilhante. Ela só não estendeu-se mais na querela para não parecer viciada e ter com o equilíbrio sexagenário  a devolução do produto.

Foi quase um confronto de nóias.

Comecei criticando muito quem fazia uso da substância, chamava-os de gente ignorante, até que, num dia que não me lembro, usei e não mais parei.

Antes era apenas para as dores físicas, depois sem que desse conta, já estava usando nos dias de tristeza.

Queria relaxar, sentir algum calor, algum frisson.

Com trinta anos cheguei a gastar quase duzentos reais em um produto de cabelo em épocas de querer mudar por fora o que estava detonado por dentro. Essas falácias que as revistas de beleza impregnam em nossa mente. Vi que o buraco era mais embaixo e parei de investir em demasia nas madeixas.

Passou se uma década e mais uns anos, achei que estava livre dessas correntes de engano. Maturidade é uma palavra tão na moda pra gente da minha idade.

A droga do meu êxtase não remete à estética, não me faz causar vexames e de quebra ainda posso chorar os esforços de uma vida, coisa de tia digna acima de suspeitas, loló do time das maduras.

Estava indo bem, tudo no sigilo, depois do banho, nos dias mais tribulados uma dipirona, musiquinha e por fim o melhor momento…

Mas como estava dizendo, hoje Dona Helena me pegou no pulo. Me inquiriu, exigiu de volta o pote de cânfora dela.

Para ser mais precisa, da pomada de cavalo que é o degrau mais alto do prazer da cânfora.

O início deu-se com as fofoqueiras folclóricas de minha rua receitando Sebo de Carneiro, depois doutorzinho.

Desdenhei do potinho vagabundo que só faltava prometer a cura da aids, do resto tudo fazia, de asma a lombar. No meu caso, a idade da loba trouxe de brinde um nervo ciático aos uivos.

Passado um tempo o doutorzinho começou a dar sinais de cansaço e não causar aquela aquecida no piriforme. Sem recomendação de nenhum doutorzinho nem doutorzão, dei de espalhar o emplasto equino nos ombros, no braço, pescoço.

Prazer de uma solitária, deitar cheirando mentol sem incomodar ninguém.

Aquele calorzinho, só futuros frequentadores do Cânforólatras anônimos entenderão.

O limite entre o uso necessário e o uso recreativo é tênue. Com certeza os fabricantes perceberam o poder da droga, basta olhar qualquer catálogo de cosmético, dos mais famosos aos mais chinfrins, sempre terá uma cânfora nas últimas páginas.

Se cânfora fosse proibida logo surgiriam biqueiras de cânfora por todo canto da cidade e Beladona seria a droga da elite.

Relutei mas resolvi devolver o potinho mágico pra velha, afinal ela deve ter alguma dor constante, mais justo que fique com ela.

Ou será que também estaria curtindo um baratinho?

Perguntei onde ela andava tendo dor e para minha surpresa ela disse estar ótima, ciático não doía há meses.

Entendi tudo. Melhor não causar alvoroço.

Deus me livre ter que participar de uma Marcha pela Cânfora.

 

Amanda Helena, bauruense, graduada em Direito. Participou da Antologia Cães Bélicos do grupo Expressão Poética em 2020 e publicações em revistas, com textos e pitacos musicais. Lançando primeiro livro no ano pandêmico de 2021 , Cavalos insones em Galopes Alados, de forma independente, previsto entre mês de maio e junho. Mãe de Talles, Thaís e Thomas. Sem nenhum grande feito no currículo, exceto ser exímia bebedora de cerveja e pós graduada em conversas com felinos. Ama música e uma treta libertária, incorrigível pessimista esperançosa que se arrisca na escrita para acalmar o coração canceriano intenso e destrambelhado.

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