Não sei bem as horas, penso como a narradora de Helena Machado em “Quando se pergunta a hora é porque a hora chegou”. Aguardo seu romance desde antes da pandemia. E ele está perto, quase sinto o cheiro, e ora me chega um petisco pela revista Granta. Já na segunda das dezenove páginas sou surpreendido pela falta de ar que me atravessa e projeta para a página seguinte e “ele lá sumindo no gelado do centro cirúrgico e os médicos avisando a gente que ele tinha oitenta por cento de chances de não voltar de lá” (MACHADO, 2019, p. 170-171).

Maria Helena Machado

O monólogo vai se espaçando e as reflexões emergem de diatribes intercontinentais. Londres e Amsterdam. E a mala do Moacir, as histórias das duas irmãs, uma que não teve pai. Ah, Moacir, “nem quando meu pai estava morrendo, ponta, e os fiapos dele, ponta, continuam em mim feito pelos de gato na minha roupa, ponta, reduzi, ponta, desacelerei, arf, arf, parei” (idem, p. 181).

A narrativa tensiona o bom humor, escarafuncha uma personalidade forte, que de abstêmia não tem nada diante do imperativo da vida. A narradora e suas duas irmãs, outras Marias. “Parecia que estávamos antevendo o quanto seríamos agradecidas por formarmos um triângulo isósceles onde, apesar de necessária, eu era o vértice mais distante”. (idem, p. 182).

A narradora se coloca como a base geométrica, enquanto as outras duas, com a mesma medida traçando perpendiculares, ao longo da vida, igualadas pelo desencanto. Agora, o mala do Moacir e o frio londrino, a escovar os dentes com Hipoglós. “Os dois afogados. E os dois salva-vidas”. (idem, p. 182). A tela em branco que não lhe dizia nada. A página em branco sendo preenchida pela aventura rocambolesca que a tira do foco, do pai, da doença, de outra vida, que não seja a sua.

E novamente o leitor, quero dizer, “eu”, surpreso com a velocidade da cena. Faço de conta que não sei que a autora é roteirista e embarco no plano-sequência: “meu celular tocou e eu já sabia e olhei a tela e vi que era a minha mãe e de algum jeito eu não me desesperei e ela disse, seu pai está passando muito mal, e ainda completou, cuidado quando atravessar a rua,” e o sangue jorrava.

O amor era avivado em meio ao desespero. Quando alguém da equipe médica perguntou as horas, ela sabia ter chegado ao fim. Depois de um, dois, três, quatro, cinco, seis stents, ele parecia não ter mais ouvidos para aquele pedido de: stand, stand by me!

REFERÊNCIA

MACHADO, Helena. Quando se pergunta a hora é porque a hora chegou. In: Granta. Revista Semestral. Lisboa: Tinta da China, 2020. Número 6. Páginas 169-187.

 

 

 

 

 

 

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Ao completar vinte anos da publicação de meu primeiro romance, fecho a trilogia prometida com este volume. Penso que esse tempo foi uma graduação na arte de escrever narrativas mais espaçadas, a que se atribui o nome de romance. Matrinchã do Teles Pires (1998), Flor do Ingá (2014) e Chibiu (2018) fecham esse compromisso. Está em meus planos a escritura de um livro de ensaios em que me debruço sobre a obra de Ana Miranda, de Letícia Wierchowski e Tabajara Ruas; o foco neste trabalho é a produção literária e suas relações com a historiografia oficial. Isso vai levar algum tempo, ou seja, no mínimo uns três ou quatro anos. Vamos fechar então com 2022, antes disso seria improvável. Acabo de lançar Gênero, Número, Graal (poemas), contemplado no II Prêmio Mato Grosso de Literatura.

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