Por Ramon Carlos*

Liguei e disse que não iria trabalhar porque não sentia as pernas. O silêncio é um estado psíquico, assim como a verdade.

– Como não sente as pernas?

– Mas como é que vou saber!

– Está deitado?

– Mas é claro.

– Então chame os bombeiros e amanhã traga um atestado. Quero ver.

– Não posso chamar, não faço ideia de onde estou.

– Tá brincando comigo galego?

– Quem dera! Não sinto as pernas supervisor! Não sinto nada! TOC-TOC-TOC. Ouviu minhas canelas? Ocas. Jesus Cristo! Posso fazer macarronada com elas.

– Como não sabe onde está? Não lembra como foi parar aí? É uma casa? Está sozinho? Vou te descontar um dia, fique sabendo.

– Acordei aqui, não lembro de nada. Parece uma casa, estou deitado sobre uma cama box muito confortável. Não sinto dores. A porta do quarto está aberta, logo rastejarei pra fora daqui. Antes queria que soubesse minha situação supervisor. Desculpe-me, se conseguir irei rastejando até aí. Só preciso me localizar.

– Para de brincadeira galego! Se não quer vir trabalhar, apenas não venha diabo! É só um dia descontado, que palhaçada por R$ 20,00.

– Ouvi barulhos. Preciso desligar.

Desliguei. Ergui-me do meu colchão no chão, acendi um cigarro e comi cinco biscoitos de água e sal. Uma chuva torrencial tocava o calçamento da rua sem saída onde moro, também tocava o telhado, um fusca e três cachorros molhados que se divertiam às 07:30 da manhã. Meu ciático e seus eletrochoques permanentes nas nádegas faziam-me ficar balançando no banquinho, enquanto comia mais biscoitos. Na próxima ligação daria mais ênfase ao drama. Palhaçada R$ 20,00? Palhaçada era carregar armários o dia todo por R$ 650,00 ao mês, sem plano de saúde e insalubridade. Palhaçada sair de casa naquela chuva, com dores irradiando até o final das pernas. Palhaçada era estar escrevendo um conto enquanto tudo isso acontecia, com o dia transcorrendo negro, e a brisa movendo a cortina plástica e curta que comprei quando vim morar aqui. Não, não, a paciência em excesso faz bem para tolos ou religiosos. Sou um bom sujeito. Deveras mais complicado que bom, quando minto me complico, mas não perderia meus R$ 20,00. Voltei para o quarto e liguei novamente:

– Galego?!

– Não estou entendendo nada. Ouvi barulhos por perto, mas logo afastaram-se. Fiquei com medo, por isso não chamei ninguém. Consegui descer da cama pelo lado do guarda-roupa e fui rastejando paulatinamente, e aí fodeu tudo. Tem um velho desacordado no chão do quarto, respira, cutuquei nas costelas, não sei o que ele tem.

– Vai continuar com essa história? Vou agora na tua casa e te pego pelo pescoço.

Ele nem sabe onde moro. Apenas três pessoas sabem meu nome e também o lugar que passo as mais longas noites. Uma ex-namorada, uma prostituta e o proprietário da casa. No cadastro da empresa consta meu antigo endereço e não recebo visitas. O entregador de bebidas do bairro também sabe, mas nunca disse meu nome pra ele, me chama de “Esponja”, e eu o trato como “Drácula”. Formalidades genuínas.

– Vai lá então. Digo a verdade. Vai me ajudar ou não? Passos, passos, me ajude, por favor!

Desliguei. Tive que rir. Liguei de novo:

– Sim?!

– Ei Drácula, bandido, pode me trazer duas garrafas de vinho?

– Agora não dá pra sair daqui.

– Por quê?

– Faleceu um tio da minha mulher. Só estou organizando pequenas coisinhas aqui e logo iremos ao velório. Se correr, espero você chegar aqui.

– Não sinto minhas pernas. Fica pra próxima.

– Fico te devendo essa “Esponja”.

– Tranquilo “Drácula”, sem formalidades.

Resolvi escrever. Na maioria das vezes ouvia música para desenvolver algo, principalmente blues, mas desta vez encontrei a harmonia necessária nos estampidos da chuva no telhado. De um modo estranho e bonito, lembrei-me daquela vez, quando tinha meus sete anos no máximo e uma tempestade colossal caiu sobre nossa velha casa de madeira, construída ao lado de um barranco onde minha mãe extraordinariamente conseguia plantar mandioca. Meu pai não estava em casa, já era noite, já era hábito. O céu reluzia temor, e em todos os novos trovões era possível sentir a fossa em frente à casa tremendo. “Estou com medo mãe”, “Deixa de ser bobo piá, já passa”. Logo um vento poderoso fez a madeira das paredes estalarem, como se estivessem rachando aos poucos. Os fios elétricos mal esticados por fora da casa davam voltas como crianças brincando de pular corda e faziam sons de fantasmas. “Vamos todos morrer, mãe”, “Vai brincar com alguma coisa, só não liga a TV que pode queimar”. Foi ficando pior, fui pro quarto, mas quando faltou luz saí correndo de lá. Na cozinha minha mãe acendeu duas velas sobre a mesa e depois formou um ramo de folhas compridas que levou até a janela fechada. Com um fósforo ateou fogo nas folhas, abriu a janela e esticou o braço direito pra fora com o ramo na mão. Sua boca movia discretamente enquanto observava a fumaça sendo arrastada pelo vento. “O que está fazendo?”, “Logo vai passar, logo, logo…” ela respondeu. Se eu tinha desenvolvido algum tipo real de fé na vida já, estava todo voltado praquele ramo queimando, “Logo vai passar, logo, logo…” pensava. De repente um tremendo estrondo fez a casa balançar e a janela bateu com toda força no braço de minha mãe, mas ela persistiu até queimar metade do ramo. Depois recolheu o que sobrou e jogou dentro da pia, abriu a torneira e o fogo apagou. Agarrou as folhas e colocou-as dentro de uma sacola pendurada na parede. “O que vai fazer com elas?”, “Guardar pra próxima”. A tempestade ficou tão intensa e assustadora que comecei chorar abraçado nela, “Por onde anda teu pai agora?! Oh Deus, que esteja protegido no bar”.

Mas bem, não era sobre isso que queria escrever, então iniciei o conto assim:

“Liguei e disse que não iria trabalhar porque não sentia as pernas. O silêncio é um estado psíquico, assim como a verdade”.

O telefone tocou, atendi, mas não disse nada, apenas respirei forte.

– Galego, pode me ouvir?

– Fale, rápido.

– E aí?

– Ouvi os passos até uma porta. Duas pessoas saíram conversando. Tentei acordar o velho, mas acho que precisa de um médico. Rastejei até a porta, está aberta. Consigo ver uma padaria daqui, mas o nome é muito pequeno.

– Grite homem!! Chame alguém!!!

– SOCOOOORRO!!! SOCOOOORRO!!!

Ainda bem que moro na última casa de uma rua sem saída, pensei.

– Ligue pra polícia!!

– E direi que estou aonde?

– Pelo amor de Deus, rasteje até a rua.

-Farei isso. Vou desligar.

Queria rir por cinquenta anos, mas fui interrompido por batidas rápidas na porta. TOCTOCTOCTOCTOCTOC. Não era possível, não, não era. Ao abrir dei de cara com ele:

– Tudo bem “Esponja”?

– Que susto me deu “Drácula”. Precisa bater tão forte na porta?

– Ouvi gritos de “Socorro, socorro”. Imaginei o pior.

– Ah, sim. Nunca ouviu essa música? “Socoooorro, socoooorro, roubaram meu bife pra apoio de mesa”.

Cantei pra ele. Cantei bem. Duas vezes.

– Desculpe, mas só ouvi “Socorro, socorro”, o resto da música passou despercebido.

– É que esse é o refrão e é cantado desse jeito. Grita-se na hora do socorro entende?! Só não gritei de novo porque perdi a voz.

– Trouxe as duas garrafas de vinho. Minha mulher está ali no carro, vamos até o velório. Pode pagar amanhã “Esponja”. Melhorou das pernas?

– Melhorei. Obrigado “Drácula”.

– Até mais.

Que querido, pagar amanhã, falou por falar, sabia que só quitaria toda dívida final do mês, como todos anteriores. Velórios não melhorariam nossos negócios. Levei uma garrafa pro quarto. Continuei o conto bebericando no bico:

“…

– Como não sente as pernas?

– Mas como é que vou saber!

– Está deitado?

– Mas é claro.

– Então chame os bombeiros e amanhã traga um atestado. Quero ver.

– Não posso chamar, não faço ideia de onde estou.

– Tá brincando comigo galego?

– Quem dera! Não sinto as pernas supervisor! Não sinto nada! TOC-TOC-TOC. Ouviu minhas canelas? Ocas. Jesus Cristo! Posso fazer macarronada com elas.

– Como não sabe onde está? Não lembra como foi parar aí? É uma casa? Está sozinho? Vou te descontar um dia, fique sabendo.”

Telefone tocou novamente:

– Alô – eu disse.

– E aí? Conseguiu?

– Sim chefe, estou indo para o hospital de ambulância.

– Está tudo bem? Onde estava?

– No centro.

– E o velho? Morreu?

– Morreu.

– Hahaha. Que ambulância silenciosa.

– Estamos parados.

– Hahaha. Vou até o hospital te ver.

– Não sei pra qual estão me levando. Deixa pra lá.

– Irei em todos.

– Boa ideia.

– Vai continuar com isso?

– Com isso o quê?

-Tudo bem. Traga-me um atestado quando puder.

R$ 20,00 valeram o divertimento. Bebi as duas garrafas de vinho e só finalizei o conto à tarde, assim:

“R$ 20,00 valeram o divertimento. Bebi as duas garrafas de vinho e só finalizei o conto à tarde, assim:

R$ 20,00 valeram o divertimento. Bebi as duas garrafas de vinho e só finalizei o conto à tarde, assim:

R$ 20,00 valeram o divertimento. Bebi as duas garrafas de vinho e só finalizei o conto à tarde, assim:

…”

 

 

Minibiografia

Ramon Carlos é coautor do livro estrAbismo (Editora Viseu, 2018). Escreve no 
site: www.estrAbismo.net. Tem materiais diversos espalhados em revistas como: 
Mallarmargens, Amaité Poesias & Cia, InComunidade, LiteraLivre, Subversa, Philos, 
Escambau, Bacanal, Ruído Manifesto, Literatura & Fechadura, Jornal Plástico Bolha 
e Cidadão Cultura.

 

 

 

 

 

 

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