6:30 da manhã. O celular vibra. Sentidos dispersos, boca seca. Desperto. Vejo as mensagens do grupo do Cidadão Cultura, não respondo. Batidas na porta da frente. Atendo. Sim, iremos, é que eu saí ontem a noite, uma pauta que terminou em uma mesa de bar. Mas, porra, é domingo, penso. Quero dormir. Os olhos ardem. Tomo um banho rápido e troco de roupa. Pegamos os equipamentos e saímos. Chabô esqueceu o tênis da Lis, que dorme tranquila em sua cadeira de bebê devidamente instalada no banco de trás. Vamos até lá, ele desce e pega o tênis, Lis adormecida, serena. Abastecemos. Tomamos um café enquanto descemos do posto até o ponto de encontro, que é o mercado. João nos espera. A pauta é com os voluntários do projeto Teoria Verde, que estão reunidos para ir até Santo Antônio de Leverger limpar as praias banhadas pelo rio Cuiabá.

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Desde o fim de 2015, duas vezes por mês, os voluntários do projeto Teoria Verde promovem ações coletivas de limpeza. Ao todo já retiraram 40 toneladas de lixo, explica o idealizador Jean Peliciari. O objetivo é evitar que este acúmulo se some às 200 toneladas de lixo já existentes no Pantanal. Só neste domingo que participamos foram retiradas três toneladas de lixo. Ação anterior no Rio Cuiabá envolveu 50 instituições, 500 voluntários e quatro bairros ribeirinhos que retiraram 30 toneladas de lixo em cinco km de rio.

Foto: João Fincatto
Foto: João Fincatto

Já havia ido à Santo Antônio mas não havia visitado suas famosas praias, fui a trabalho em um bate e volta. É estranho pensar como conhecemos pouco do lugar onde vivemos, de que algo está tão próximo a nós, nos pertence, mas sequer temos consciência do quanto é intrínseco a nossa existência, ao que somos. O rio me pareceu seco, com uma faixa grande de areia beijando suas águas calmas. E vi armadilhas para peixes com graúdos que se debatiam na débil tentativa de se soltar daquelas amarras.

Peguei um saco de lixo, coloquei as luvas descartáveis, tudo fornecido pelo pessoal do projeto e fui empolgada, descendo a areia, tentando vencer o sono que estava sentindo. E aí comecei a catar todo tipo de coisa daquelas praias, embrulhos de bolacha e chiclete, garrafas pet, latas de cerveja, suco, refrigerante, embalagens de amaciante, vários tipos de plásticos e até um cobertor enterrado na areia. Ah, esqueci dos chinelos.

Foto: João Fincatto
Foto: João Fincatto

O lixo se confundindo com a vegetação, a natureza cobrindo todos os dejetos, fazendo dos entulhos parte de si, pois eles não irão a lugar nenhum. Ficarão lá por anos e anos, decompondo-se mais lentamente do que a carne humana que o deixou para trás. Como se seus rastros de lixo fossem significar a sua existência vazia. O plástico fica, a carne vai.

E este é um problema que vai muito além da ação do Teoria Verde, é um problema que infelizmente, não se resolverá com 30 pessoas abaixando exaustivamente para catar o lixo deixado por outras pessoas. O que é preciso que exista urgentemente é a consciência. A consciência de que não existe fora, isto aqui, agora, é o que temos, a nossa casa, a nossa vida, a nossa natureza selvagem. Se não preservamos o nosso mundo, não preservamos a nós mesmos, e estamos fadados à extinção, da mesma vil e cruel maneira a qual sentenciamos inúmeras espécies ao silêncio daqueles que não existem mais.

Foto: João Fincatto
Foto: João Fincatto

Não sejamos tolos de imaginar que a realidade do meio ambiente destoa do nosso universo urbano. Precisamos ser conscientes ao consumir. Esta água do rio que recebe o esgoto sem qualquer tratamento, que morre por receber tudo aquilo que colocamos “pra fora”, seja de nós mesmos ou de nossas casas, é a mesma água que iremos utilizar em nosso banho, em nossa cozinha, em nossas vidas. Porque a vida é uma só. É só o que temos. E se agora, não cuidarmos disto que temos, logo, não seremos nada.

É urgente repensar o consumo, repensar o lixo que se acumula, o entulho que enterramos fundo em nossa consciência, como se pudéssemos viver cegos pela nossa própria sujeira. O lixo foi recolhido, e para onde irá? Qual o tratamento que recebe? A sua cidade tem coleta de lixo seletiva? Existe separação do lixo? Existem políticas públicas que promovam a reciclagem, que não depreciem mais áreas com aterros sanitários que não resolvem o problema, apenas o acumulam? Bem debaixo de nossas vistas.

Foto: João Fincatto
Foto: João Fincatto

Este despertar da consciência passa pelas nossas crianças. O menino vestido de super-herói precisa deste poder imaginário para resolver um problema que aparenta ser impossível para um humano. Mas temos que mostrar para eles, que são o nosso futuro e recebem este mundo de herança, que somos nós, os responsáveis por promover mudanças. Por mudar a realidade que vivemos. E para isso, não precisamos de heróis, precisamos apenas fazer a nossa parte. É com união e consciência de que se cada um fizer a sua parte, representaremos um amanhã a mais em nossa breve existência na Terra.

Me lembro de Estamira, que no meio do lixão onde morava ria dos “espertos ao contrário”, como se seu riso guardasse um segredo que não nos pertence. Não irei decifrar o segredo de Estamira, mas de uma coisa eu sei, quando você se abaixa, com o sol queimando suas costas, para recolher o lixo de outros, algo muda dentro de você. Muda e não tem mais retorno. É a consciência da própria vida. De uma vida que é de todos nós, e é única.

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2 Comentários

  1. Tomara que com essas ações dos Teoria Verde e os magníficos voluntários, atinja a consciência da população e do poder público, que são os grandes responsáveis por esta tragédia pantaneira (o lixo).

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