Por Leonardo Roberto*

“Somos una especie en viaje

No tenemos pertenencias, sino equipaje

Vamos con el polen en el viento

Estamos vivos por que estamos en movimiento

(…)

Yo no soy de aquí

Pero tu tampoco

De ningún lado, de todos y,

De todos os lados un poco”

Jorge Drexler, Movimiento. 2017

Ao abrir a edição mais recente do livro O Lost, editada por William Faulkner e mantido o nome original do romance de Thomas Wolfe, que ficou famoso pelo título Look homeward, Angel, lê-se a seguinte frase, que inaugura a leitura: “O tempo é um rio que corre.”[1]. A simplicidade da metáfora prepara o terreno para o leitor, em um tema conhecido e vivido por todos. Ao longo do romance, as descrições minuciosas dos anseios e dissabores da vida de um jovem morador da fictícia cidade litorânea de Altamont, no estado – também fictício – de Catawba, coloca-o sempre em trânsito: quando em Altmont, sonha com as metrópoles inglesas, quando em Manchester, planeja a volta para a casa. O transitivo marca o passo de toda obra.

A escrita rápida e detalhada caracteriza a obra e faz entender sua influência exercida sob diversos intelectuais do século XX. Jack Kerouac idolatrava Wolfe e dele tomou emprestado o traço “wolfeano” que ficou conhecido como fluxo de consciência, no qual a pontuação, a estrutura do enredo e a cadência na escrita dão lado ao poder das lembranças e emoções ao contar uma história. Em On the Road, a bíblia hippie, pedra fundadora da geração Beat – ambos movimentos que ecoam parcialmente incompreendidos até hoje – esse fluxo ressurge de maneira ainda mais acelerada e pessoal, em uma espécie de ficção autobiográfica. São narradas as perambulações de Jack Kerouac nas paisagens norte-americanas, que costumeiramente o tiravam dos bares esfumaçados ao som de Bebop Jazz do bairro de Harlem, em Nova Iorque, e o levavam para o Oeste, terras dos antigos sonhos de prosperidade na América, de Denver, das estações de trem e da ebulição estudantil em São Francisco.

A estrada é presente em  toda narrativa. Em quase toda obra, a paisagem é sempre a estrada e essa sempre aponta contra a normativa do status quo norte-americano. A segurança de um emprego, a constituição de uma família e o apoio às causas da nação são deixados de lado para que o narrador siga Neal Cassidy, Allen Gingsberg, William S. Borroughs pelo “grande quintal”, como coloca Kerouac, que é a “América” para esses escritores. As tradições americanas, descritas na obra, são colocadas em plano de fundo, o American Way of Life aparece como uma paisagem rota, desimportante. On the Road marcou gerações desde seu lançamento em 1947, sendo traduzida para 18 idiomas em seu ano de lançamento e se popularizou, principalmente entre os jovens universitários da década de 1960, tornando-se um artefato a ser estudado por quem se interessasse pelos movimentos contraculturais que culminaram com o festival de música e arte de Woodstock, em 1969.

Eric Hobsbawm, em A invenção das tradições, explica o fenômeno da tradição como uma ferramenta das elites financeiras e intelectuais para a manutenção de seus interesses. Tal como Geertz e a briga de galos balinesa, traz um exemplo prático, o das Kilts escocesas, vestimentas que, por serem saias, são comumente associadas aos vestuário feminino na contemporaneidade, mas, na leitura do historiador, são usadas em momentos estratégicos, como competições e eventos nacionais, para remeter à nação gaélica, à ancestralidade e à valorização do passado e sua estrutura de costumes. A partir de exemplos como esse, o autor estuda como as manifestações culturais europeias servem como defensores subjetivos da ideia de estado-nação. Esse exercício pode ser aplicado a outras nações que têm seus arquétipos espalhados por todo globo, como soldados americanos marchando e atirando com suas carabinas para cima, glamourizando imagens muito presentes nos debates sociais do país como os gastos militares, porte de armas e  homens como protetores da nação; ou mesmo, como no Brasil, o carnaval e outras tradições abraçadas pelas elites e exportadas para o resto do globo, constituindo imagens de maneira que nem sempre se apresentam como positivas ou representativas da nação.

Voltando ao romance de Kerouac, que vira as costas para o establishment, nos é apresentado um documento histórico diante do contexto da nação entre os anos 50-60. A ampliação da educação universitária depois da Segunda Guerra Mundial que ocorre para suprir as necessidades industriais da, então, maior potência do mundo, levou a uma maior participação dos jovens na sociedade americana, pois, uma vez entrando nas universidades e saindo para o mercado de trabalho, tornavam-se, de fato, atores sociais, tomavam decisões coletivas e pagavam impostos; não eram mais crianças crescidas, como os jovens eram comumente vistos. A ampliação das oportunidades de ensino também possibilitou o ingresso de negros nas universidades, gerando diversos conflitos com os setores mais conversadores da sociedade. O caso do estudante James Meredith é icônico, tendo sido necessário que o presidente John F. Kennedy ativasse a guarda nacional para escolta-lo em sua matrícula. Movimentos como a Marcha sobre Washington em 1963 e a instituição do Civil Act no ano seguinte figuraram como uma vitória dos direitos humanos e o princípio de um caminho para superar a dívida histórica para com os descendentes europeus e os afro-americanos. Outros fatores, igualmente importantes, merecem ser mencionados, como o ingresso em massa das mulheres no mercado de trabalho e nas universidades, a nova constituição da família e a naturalização do divórcio, assim como da liberdade sexual, todas mudanças gradativas, é claro, mas que tiveram notável profusão neste período. E ainda, a importância crescente da mídia que levou propaganda e conteúdo ocidentalizado de todo tipo para as grandes cidades do mundo.

Essa retomada histórica certamente poderia ser trabalhada por si só, mas nos atentemos, por hora, a um ponto específico, a causa negra, para trazer outra figura desse roll de intelectuais contraculturais, periféricos e alheios aos modismos e normas da produção acadêmica e literária.

Stuart Hall é apresentado no artigo do centenário do tabloide inglês The Guardian da seguinte maneira: Stuart’s extraordinary impact was not because he happened to be black and from Jamaica. It was because he was black and from Jamaica.[2]  A assertiva de seu companheiro de escrita da antiga revista do The Guardian ressalta um ponto central para entender a crítica cultural e política de Hall, a sua posição de outsider.

Tal como Wolfe e Kerouac, a escrita de Hall sugere um traço autobiográfico, como negro, vindo de uma ex-colônia do país em que produzia e vivia. Ele tratou da questão da identidade e consequentemente, da falência da concepção da identidade moderna, que tinha suas fundações em ideais nacionais. A superação do sujeito iluminista, racional, com uma concepção individualista do self abre espaço para o que o autor chamaria de sujeito sociológico, o sujeito moderno pretendido pela ideologia dominante da época, que se tornaria já ciente da presença do outro e da importância do coletivo, ao menos dos que estivessem ao seu redor e proporcionassem trocas culturais dentro de seu universo identitário. Para explicar esse segundo sujeito recorre a autores chamados de interacionistas simbólicos, como G.H. Mead e C.H.Cooley, além dos antropólogos pós-estruturalistas. O sujeito sociológico então, teria a identidade baseada no self (racional) e em um mundo controlado ao seu redor, relacionando-se com “padrões” culturais. Hall o coloca como “amarrado” à estrutura e isso em face das mudanças sociais que marcavam o tempo[3]. Logo, um terceiro sujeito surge, denominado sujeito pós-moderno, que tem a identidade como uma celebração móvel, transitiva, “formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam” (Hall, 1987).

A progressão dos sujeitos apresentados por Hall traz a importância da noção de movimento, de culturas e identidades coabitáveis. Diante dessa perspectiva, são abertas as portas para seus estudos mais tardios, focados na causa negra e no pensamento pós-colonial. Gramsci e a relação centro-periferia são evocados em diversas partes de suas reflexões sobre identidades. Suas citações vêm, mandatoriamente, do Magnum Opus do sociólogo italiano os Cadernos do Cárcere, escritos ao longo de dez anos enquanto preso político da Itália de Mussolini, na condição de “observador externo” da malha social italiana, em reclusão.

Hobsbawm pode voltar à nossa discussão de maneira mais pertinente. Nascido no Egito, mudou-se para a Alemanha, de onde teve que fugir devido à ascensão do Nazismo – já que era um prolífico intelectual marxista, logo que começou a lecionar – para radicar-se na Inglaterra, onde teve a maior parte da sua produção. Assim como Hall, um outsider, foi escritor e editor da revista Marxism Today e não se escondeu diante das mudanças da época, das novas contestações sociais. Em sua brilhante obra sobre o século 20, denominada A era dos extremos, dedica a maior parte do livro à era de Ouro, que compreende o período do fim da Segunda Guerra Mundial até o primeiro choque do petróleo em 1973.

O ponto comum desse panorama que venho tentando traçar a partir desses autores que não estão na sombra, mas talvez da penumbra – vai além do seu “afastamento” da sociedade para estudá-la. Tanto nos romances de Wolfe e Kerouac, quanto nos estudos de cultura de Hall e as análises históricas como ferramentas para previsões de Hobsbawm, hora ou outra, surgem questões relativas ao tempo e ao movimento. Hall coloca a transitoriedade como um aspecto fundamental da cultura, o que ilustra boa parte de seu pensamento e ajuda a nos prepararmos para olhar a contemporaneidade. Nessa mesma linha (ou novelo de ideias que perpassam umas pelas outras) o antropólogo britânico Tim Ingold em Estar Vivo: Ensaios sobre movimento, conhecimento e descrição orbita entre essas três palavras para fazer uma antropologia da vida; O ser, nessa antropologia, que propõe ir além da tipificações (culturalista, simbologista, estruturalista, etc), é um ser transitivo, em movimento, caminhando em um mundo atomicamente movente, conhecendo e descrevendo. Assim como Kerouac, que em suas obras do fim da vida fala sobre a atenção, recorrendo ao zen-budismo, Ingold procura na fenomenologia e na noção de devir de Heidegger uma forma de entender o fenômeno da atenção, do despertar para o mundo que nos envolve, o mundo onde habitamos. Essa tríade de mover, conhecer e descrever suscita outras questões sobre a presença humana na vida, como a questão do habitar, para além da visão clássica adotada pela engenharia ou arquitetura de morada, como um mero local onde se desenvolvem as atividades de lazer, descanso e prazer. Habitar, na visão Ingoldiana, não se limita às paredes, o ser que habita, habita o mundo e suas linhas tortuosas, nunca retas, geométricas, cada ação é vista como uma mesma malha que une o passado ao futuro. Habitar, para Ingold, é “iniciar um movimento ao longo de um caminho de vida” e esse ser/habitar é que possibilita as percepções e as observações: “Ser, eu diria agora, não é estar em um lugar, mas estar ao longo do caminho. O caminho e não o lugar, é a condição primordial do ser, ou melhor, do tornar-se” (Ingold, 2011, p.38).

Essa compreensão do ser movente muda radicalmente a concepção de lugar de fala, de ponto de vista e de perspectiva, que são construções intransitivas. Ingold pensa na antropologia e estudos culturais de uma maneira nova, já não mais olhando para culturas locais, que denotam um compromisso com o regional. Assim sendo, propõe pensar em uma cultura wayfarer, do viajante, tal como Neal Cassidy de Kerouac, ou Edmund de Wolfe, mais próximos à visão do sujeito pós-moderno de Hall. Como pensar a cultura a partir de um só ponto, uma vez que pisamos em um solo de um mundo movente? O devir volta a aparecer em forma de metáfora, tal como em Geertz ou Hobsbawm, quando Wolfe pede que o leitor imagine um rio correndo sobre uma ponte, que liga as duas margens do rio, delimitando território da água, mas tanto a ponte quanto as margens fazem parte e existem por conta do devir rio, da água corrente, em movimento. Como o tempo, um rio que corre.

[1] Tradução livre

[2] O impacto extraordinário de Stuart não foi porque ele, por coincidência, era negro e vindo da Jamaica. Foi porque ele era negro e vindo da Jamaica. (tradução livre)

[3] Hall teve uma extensa produção à respeito da cultura da época de 60/70, versando sobre o movimento hippie, tatcherismo, mídia, entre outros temas sensíveis.

*Leonardo Roberto é estudante de mestrado no programa de Estudos de Cultura 
Contemporânea na Universidade Federal do Mato Grosso (ECCO-PPG). 

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