Por Leonardo Roberto*
“Somos una especie en viaje
No tenemos pertenencias, sino equipaje
Vamos con el polen en el viento
Estamos vivos por que estamos en movimiento
(…)
Yo no soy de aquí
Pero tu tampoco
De ningún lado, de todos y,
De todos os lados un poco”
Jorge Drexler, Movimiento. 2017
Ao abrir a edição mais recente do livro O Lost, editada por William Faulkner e mantido o nome original do romance de Thomas Wolfe, que ficou famoso pelo título Look homeward, Angel, lê-se a seguinte frase, que inaugura a leitura: “O tempo é um rio que corre.”[1]. A simplicidade da metáfora prepara o terreno para o leitor, em um tema conhecido e vivido por todos. Ao longo do romance, as descrições minuciosas dos anseios e dissabores da vida de um jovem morador da fictícia cidade litorânea de Altamont, no estado – também fictício – de Catawba, coloca-o sempre em trânsito: quando em Altmont, sonha com as metrópoles inglesas, quando em Manchester, planeja a volta para a casa. O transitivo marca o passo de toda obra.
A estrada é presente em toda narrativa. Em quase toda obra, a paisagem é sempre a estrada e essa sempre aponta contra a normativa do status quo norte-americano. A segurança de um emprego, a constituição de uma família e o apoio às causas da nação são deixados de lado para que o narrador siga Neal Cassidy, Allen Gingsberg, William S. Borroughs pelo “grande quintal”, como coloca Kerouac, que é a “América” para esses escritores. As tradições americanas, descritas na obra, são colocadas em plano de fundo, o American Way of Life aparece como uma paisagem rota, desimportante. On the Road marcou gerações desde seu lançamento em 1947, sendo traduzida para 18 idiomas em seu ano de lançamento e se popularizou, principalmente entre os jovens universitários da década de 1960, tornando-se um artefato a ser estudado por quem se interessasse pelos movimentos contraculturais que culminaram com o festival de música e arte de Woodstock, em 1969.
Voltando ao romance de Kerouac, que vira as costas para o establishment, nos é apresentado um documento histórico diante do contexto da nação entre os anos 50-60. A ampliação da educação universitária depois da Segunda Guerra Mundial que ocorre para suprir as necessidades industriais da, então, maior potência do mundo, levou a uma maior participação dos jovens na sociedade americana, pois, uma vez entrando nas universidades e saindo para o mercado de trabalho, tornavam-se, de fato, atores sociais, tomavam decisões coletivas e pagavam impostos; não eram mais crianças crescidas, como os jovens eram comumente vistos. A ampliação das oportunidades de ensino também possibilitou o ingresso de negros nas universidades, gerando diversos conflitos com os setores mais conversadores da sociedade. O caso do estudante James Meredith é icônico, tendo sido necessário que o presidente John F. Kennedy ativasse a guarda nacional para escolta-lo em sua matrícula. Movimentos como a Marcha sobre Washington em 1963 e a instituição do Civil Act no ano seguinte figuraram como uma vitória dos direitos humanos e o princípio de um caminho para superar a dívida histórica para com os descendentes europeus e os afro-americanos. Outros fatores, igualmente importantes, merecem ser mencionados, como o ingresso em massa das mulheres no mercado de trabalho e nas universidades, a nova constituição da família e a naturalização do divórcio, assim como da liberdade sexual, todas mudanças gradativas, é claro, mas que tiveram notável profusão neste período. E ainda, a importância crescente da mídia que levou propaganda e conteúdo ocidentalizado de todo tipo para as grandes cidades do mundo.
Stuart Hall é apresentado no artigo do centenário do tabloide inglês The Guardian da seguinte maneira: Stuart’s extraordinary impact was not because he happened to be black and from Jamaica. It was because he was black and from Jamaica.[2] A assertiva de seu companheiro de escrita da antiga revista do The Guardian ressalta um ponto central para entender a crítica cultural e política de Hall, a sua posição de outsider.
Tal como Wolfe e Kerouac, a escrita de Hall sugere um traço autobiográfico, como negro, vindo de uma ex-colônia do país em que produzia e vivia. Ele tratou da questão da identidade e consequentemente, da falência da concepção da identidade moderna, que tinha suas fundações em ideais nacionais. A superação do sujeito iluminista, racional, com uma concepção individualista do self abre espaço para o que o autor chamaria de sujeito sociológico, o sujeito moderno pretendido pela ideologia dominante da época, que se tornaria já ciente da presença do outro e da importância do coletivo, ao menos dos que estivessem ao seu redor e proporcionassem trocas culturais dentro de seu universo identitário. Para explicar esse segundo sujeito recorre a autores chamados de interacionistas simbólicos, como G.H. Mead e C.H.Cooley, além dos antropólogos pós-estruturalistas. O sujeito sociológico então, teria a identidade baseada no self (racional) e em um mundo controlado ao seu redor, relacionando-se com “padrões” culturais. Hall o coloca como “amarrado” à estrutura e isso em face das mudanças sociais que marcavam o tempo[3]. Logo, um terceiro sujeito surge, denominado sujeito pós-moderno, que tem a identidade como uma celebração móvel, transitiva, “formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam” (Hall, 1987).
Hobsbawm pode voltar à nossa discussão de maneira mais pertinente. Nascido no Egito, mudou-se para a Alemanha, de onde teve que fugir devido à ascensão do Nazismo – já que era um prolífico intelectual marxista, logo que começou a lecionar – para radicar-se na Inglaterra, onde teve a maior parte da sua produção. Assim como Hall, um outsider, foi escritor e editor da revista Marxism Today e não se escondeu diante das mudanças da época, das novas contestações sociais. Em sua brilhante obra sobre o século 20, denominada A era dos extremos, dedica a maior parte do livro à era de Ouro, que compreende o período do fim da Segunda Guerra Mundial até o primeiro choque do petróleo em 1973.
O ponto comum desse panorama que venho tentando traçar a partir desses autores que não estão na sombra, mas talvez da penumbra – vai além do seu “afastamento” da sociedade para estudá-la. Tanto nos romances de Wolfe e Kerouac, quanto nos estudos de cultura de Hall e as análises históricas como ferramentas para previsões de Hobsbawm, hora ou outra, surgem questões relativas ao tempo e ao movimento. Hall coloca a transitoriedade como um aspecto fundamental da cultura, o que ilustra boa parte de seu pensamento e ajuda a nos prepararmos para olhar a contemporaneidade. Nessa mesma linha (ou novelo de ideias que perpassam umas pelas outras) o antropólogo britânico Tim Ingold em Estar Vivo: Ensaios sobre movimento, conhecimento e descrição orbita entre essas três palavras para fazer uma antropologia da vida; O ser, nessa antropologia, que propõe ir além da tipificações (culturalista, simbologista, estruturalista, etc), é um ser transitivo, em movimento, caminhando em um mundo atomicamente movente, conhecendo e descrevendo. Assim como Kerouac, que em suas obras do fim da vida fala sobre a atenção, recorrendo ao zen-budismo, Ingold procura na fenomenologia e na noção de devir de Heidegger uma forma de entender o fenômeno da atenção, do despertar para o mundo que nos envolve, o mundo onde habitamos. Essa tríade de mover, conhecer e descrever suscita outras questões sobre a presença humana na vida, como a questão do habitar, para além da visão clássica adotada pela engenharia ou arquitetura de morada, como um mero local onde se desenvolvem as atividades de lazer, descanso e prazer. Habitar, na visão Ingoldiana, não se limita às paredes, o ser que habita, habita o mundo e suas linhas tortuosas, nunca retas, geométricas, cada ação é vista como uma mesma malha que une o passado ao futuro. Habitar, para Ingold, é “iniciar um movimento ao longo de um caminho de vida” e esse ser/habitar é que possibilita as percepções e as observações: “Ser, eu diria agora, não é estar em um lugar, mas estar ao longo do caminho. O caminho e não o lugar, é a condição primordial do ser, ou melhor, do tornar-se” (Ingold, 2011, p.38).
[1] Tradução livre
[2] O impacto extraordinário de Stuart não foi porque ele, por coincidência, era negro e vindo da Jamaica. Foi porque ele era negro e vindo da Jamaica. (tradução livre)
[3] Hall teve uma extensa produção à respeito da cultura da época de 60/70, versando sobre o movimento hippie, tatcherismo, mídia, entre outros temas sensíveis.
*Leonardo Roberto é estudante de mestrado no programa de Estudos de Cultura Contemporânea na Universidade Federal do Mato Grosso (ECCO-PPG).
Parabéns filho !
Orgulho !!!