Colocar-se no lugar do outro. Enxergar o outro. Atravessar a sua existência, a sua experiência. O exercício de ouvir que nos ensina o que é a empatia. É através desse escutar que os olhos passam a ver a realidade do outro, a sentir o outro. Eu senti esse atravessamento de existências durante os debates do Seminário de Políticas Culturais no SESC Arsenal no mês passado. E uma destas falas que potencializou novos sentidos em mim foi a da psicóloga e professora Jaqueline Gomes de Jesus (RJ) na mesa sobre “Transgener(al)idades: arte, vida e resistência”. Pesquisadora, é autora de livro sobre transfeminismo, uma nova forma de pensamento e ação feminista, como informou. Seguem aqui trechos da sua fala:
“Queria comentar que sugeri esse tema transgeneralidades e até me perguntaram o que significava. Não é dicionarizado não, é um jogo de palavras; transgeneralidades são um balaio que juntamos as identidades trans como juntaríamos das cisgeneridades com generalidades. E estou aqui para falar como o olhar e o fazer das pessoas trans contribuem não só para pessoas trans mas para uma visão de mundo. Não só como sempre se faz ainda hoje: o homem branco hetero cisgênero casado falando sobre tudo, sobre o mundo, até sobre outras realidades que ele nem vive, outras identidades, que pode ter até empatia mas não vivencia aquelas identidades. E as pessoas que fazem parte de grupos historicamente discriminados. Eu pego como referência a história da população negra após a escravidão moderna. É bem essa ideia de que é o homem branco que fala sobre o mundo. A população negra é aquela sobre a qual se fala, quem não é negro fala sobre a população negra, inclusive sem ouvir a população negra. Não tem problema falar de outras pessoas, mas desde que se escute essas pessoas.
Esse processo de não-escuta é um assassinato, é uma violência; assassina a ideia de que o outro pode falar sobre si, sobre o mundo e é importante para questionar num caminho de humanidade, como as pessoas trans constroem. Eu sou da psicologia, então vou olhar sobre isso pelo meu instrumento que é a história.
A população negra vivenciou a desgenerificação ao longo do processo da escravidão. Os homens e mulheres de povos africanos que foram traficados, sequestrados, escravizados ao longo de 350 anos, foram desgenerificados. É um exemplo de como esse processo funciona. Dizer que essa pessoa é mais mulher, ou mais homem do que outros ainda é muito comum e muito violento.
Exemplo da escravidão pra explicar isso: Homens e mulheres negros não eram vistos como homens e mulheres, a mulher negra dentro do estereótipo de mulher negra não era tratada da mesma forma que a mulher branca e foi a grande crítica do feminismo negro dos anos 70. Vocês que falam de mulheres, de quais mulheres falam? É a mulher branca, cisgênero, abastada, com filhos, classe média? E as outras mulheres? É importante para mudar o olhar e ver que existe diversidade de seres humanos. É até esdrúxulo ter que falar isso, mas é necessário.
Vivemos em uma sociedade que as pessoas não tem direito ao nome, não tem direito a identidade, não tem direito de mudar o seu registro. Um ato simples como mudar o nome no cartório. Eu não vivo com esse nome e esse gênero, não me reconheço com esse gênero e não sou identificada assim. Quero mudar e, infelizmente no Brasil, o sistema de registro civil ainda usa o conceito de sexo. O correto seria conceito de gênero, porque não importa sexo biológico, porque não tem como definir isso apenas através de um genital aparente. Aqui não tem esse direito de modificar como na Argentina que tem uma lei de identidade de gênero, que é direito dela como ser humano de ter uma identidade.
O nosso sistema judiciário é complicado de ser acessado e falamos de uma população em que 90% só consegue trabalho na prostituição. 90% só conseguem trabalho na prostituição não porque amem, não que seja um trabalho indigno mas é de se questionar: por que essa população está tão a margem? Excluída nesse nicho como se não tivesse condições de trabalhar em outras coisas? Vivemos nessa sociedade e que 90% das mulheres trans, das travestis, estão na prostituição e somos o país que mais mata pessoas trans no mundo, principalmente travestis e mulheres trans.
Além de ser um país feminicida é um país que comete feminicídio trans. O México também está isso e é uma constante dos últimos 18 anos. Desde quando começou a contabilizar, está em 2º lugar e mata metade de pessoas trans do que o Brasil.
No ano passado foram 145 pessoas trans assassinadas e acho que teve um aumento de homens trans assassinados; acho que chegaram a cinco se não me engano.
Existe um movimento de reconhecimento dos homens trans de identidade, de serem reconhecidos como homens. Dentro deste modelo de masculinidade, é uma repressão profunda do homem que não pode ser quem ele é. Para ser homem tem que ser sempre a negação de alguém ou de algo. Existe esse desafio na nossa sociedade e o caminho não é de hoje.
Têm projetos de lei importantes. O Projeto de Lei de Identidade de Gênero JOÃO NERY, que estabelece o direito de retificar o registro civil sem necessidade de judicializar, e está parado pelo nosso Legislativo, não acredito que vai andar tão cedo. Não é de hoje. O nosso Legislativo é o poder mais retrógrado, mas nos últimos 20 anos tem sido assolado por uma onda de fundamentalismo religioso muito grave dentro de um projeto de poder específico. O Legislativo tem muito texto sobre população trans, LGBT, dentro das conferências políticas de mulheres considerando as mulheres trans e travestis, mas são textos; como politicas públicas não foram feitos.
Tem um projeto, o Damas do Rio de Janeiro, que capacita e emprega pessoas trans, e o Trans Cidadania em São Paulo. São exemplos muito bons que dão bolsas e capacitam, pois é uma população que está 90% excluída do mercado de trabalho literalmente.
A única saída seria o Judiciário. No Supremo Tribunal Federal (STF) existem duas ações que são relevantes. Vivemos num tempo que STF tem que julgar e é triste, mas necessário. Uma é sobre o direito a nome, de retificar registro, e a outra é o direito das pessoas trans a usarem um banheiro em qual gênero se reconhece. Quer dizer, é uma sociedade que discute se as pessoas podem cagar e mijar.
É um apartheid de gênero. Somos colocados nas camisas de força azul e cor de rosa. É falta do nosso histórico. Vivemos pouco, não temos noção de todos os processos históricos que levaram a isso. Foi inventado nos anos 50, mas pra nós parece eterno e foi construído a fins de mercado, mas aí é outra história.
Cultura e arte para população trans é bom falar que tem uma história riquíssima, apagada, inviabilizada ou roubada, pega por outro grupo e esquecida. O movimento LGBT moderno, que hoje chamamos assim mas que desde 69, era o movimento gay agregando várias identidades que não eram só dos homens gays, mulheres homossexuais, mulheres trans. Na Revolta de Stone Wall foram as mulheres trans que questionaram a violência policial e esse movimento era genericamente chamado de gay.
Quando falamos das travestis falamos de uma cultura que remonta até o século 18. O próprio termo travesti vem do francês, de colocar uma roupa. É um verbo, ainda é um verbo. Do português arcaico, a pessoa se travestir, se colocar como alguém de outro gênero. E isso foi alcunhado para as travestis, para essas pessoas trans.
Por muito tempo qualquer pessoa trans era colocada como travesti ou no caso dos homens era como uma lésbica masculinizada, e lésbica também é um termo recente; usava-se safista.
A travesti, essa identidade, uma identidade estereotipada e violentada, é muito mais antiga do que pensam. A cultura drag foi criada pelas travestis para sobreviver. Se vocês forem ver, no RJ já tinha bares de travestis desde o século 19, que os marinheiros vinham. Essa cultura vem de muito tempo e surgiu em função da exclusão, por haver pessoas como essas que não se portavam socialmente como era determinado. Não só de vestuário. Como se a questão da vivência da travesti fosse só uma questão de roupa, de um homem vestir de mulher. E é muito superficial pensar assim, como se não fosse uma questão de identidade, mas essa violência persiste e só se considerava natural a possibilidade dessas travestis estarem durante o carnaval. No resto do ano eram escondidas, presas durante o dia, porque se saíssem eram violentadas. Muitas ainda são, sofrem muita transfobia, mas apesar da violência criaram essa cultura.
Não criaram uma literatura, mas uma oraleitura, um compêndio de saberes sobre o corpo; como organizar seu corpo que vai ser reconstruído com o momento cultural, uma cultura fantástica que marca o Brasil fora.
Infelizmente o Brasil, como país que trafica pessoas, que mais exporta mulheres para a prostituição, e pessoas trans mulheres, travestis para a prostituição. Falamos da mercantilização do corpo e o Brasil é conhecido por isso. Muitos filmes sobre trans, sobre profissionais do sexo trans na Europa geralmente são de brasileiras. Não é por acaso, como se imagina que seja um dom ou uma característica do país em produzir trans belíssimas, mas porque a realidade aqui é muito violenta. É o Brasil reproduzindo suas violências, transfóbica, sexista, cis sexista. Coloca sobre a pessoa trans e tenta assassinar seu pensamento sobre o mundo, como entende o mundo, como contribuir para repensar gênero, relações sociais, identidade. E criaram essa cultura que ainda hoje aprendemos muito, essas ancestrais de espírito que lutaram e ainda lutam muito ao direito à vida, à fala e à identidade. Caminho muito difícil ainda hoje e, para muitos da identidade trans, a arte era um mecanismo de libertação.
Esse espaço da arte, da cultura, foi um espaço de sobrevivência encontrado por muitas pessoas trans ou que divergiam dos estereótipos de gênero da sociedade. Podemos incluir pessoas trans e até heterossexuais que não se identificavam com esse padrão. No RJ, desde os anos 20, 30 até os anos 60, 70 já existiam casas de shows de travestis; show de Rogéria, por exemplo. Tinham esses espetáculos que eram muito procurados pelo exótico: o Carrousel de Paris, que era muito famoso. E nos anos 30, uma mulher trans veio da França pela sua fama e foi seguida na rua porque as pessoas queriam ver, ela Conchinella, uma artista trans tenha tido tanta visibilidade nos anos 30.
Outras casas de espetáculos e shows de travestis, acho que em Porto Alegre também tinha e era um espaço muito importante de vida. Muitas se projetaram para fora, como Rudi Pinho, artista e cantora. Ela atuou em filmes, inclusive com a Vera Fischer. Rudi acho especial porque tem outra dimensão; não só da atriz, mas da pensadora. Ela tem vários livros escritos, biografias, livros de contos premiados pela Fundação Biblioteca Nacional. Tem a ver com cultura no sentido amplo. Tem mulheres trans na área de informática que criaram linguagens de computador que usamos hoje e ninguém fala que foi mulher trans.
Para reconhecer arte e cultura produzida por pessoas trans e pensar nessa arte, é relevante pensar nesse protagonismo como aquilo que as pessoas trans produzem. Seja no caminho da arte ou da cultura de forma geral, é invisibilizado ou é tratado como exótico, ou aquilo que está colocado como característica da população. Pra ser homem trans tem que gostar desse tipo de espetáculo, tem que ser dessa forma. É uma constante porque vivemos nessa realidade e o Brasil se fundamentou com esses traumas. Temos três grandes traumas:
O trauma da colonização, de que somos fundados no genocídio. Temos a lógica de que vamos matar em função do que nos interessa, mesmo que sejam povos inteiros. Isso acontece com a população trans. Vivemos um genocídio trans sim, para além das concepções de genocídio; todas as características se aplicam à população trans, não é só de número e porcentagem. Sobre o feminicidio, principalmente negro, só se mostra mulher branca; cadê as mulheres negras e o feminicidio trans?
O segundo trauma, é o trauma da escravidão. A ideia de que podemos explorar os outros, os conhecimentos e saberes para o nosso interesse. E isso está presente ainda na sociedade. A ideia de que eu vou deixar os melhores cargos para este grupo social, essa cultura subalternizada que não tem direito a vida, a sair na rua, não tem direito de relacionamentos afetivos abertos, não é reconhecido socialmente, tem estigma. Por exemplo, se um homem ficar com uma mulher trans, isso é uma violência, também é uma subalternização. Você não é digna de amor quanto outras pessoas e é perverso porque é considerado normal.
E o trauma da censura. Somos uma sociedade que nos censuramos muito, vivemos muitas ditaduras civis-militares, fomos cerceados no que podemos ou devemos falar. Há pouco tempo, se falasse palavra sexo num auditório ou sala de aula, isso causava incômodo e ainda acontece com a população trans. Existe essa dificuldade de reconhecer mulheres trans e homens trans, mas afinal o que é ser homem e o que é ser mulher?
A população trans, pelo que conheço da história da população brasileira e da alta capacidade de se apropriar de outros elementos, tem muita gente aí visível que serve de referência cultural para gente pensar como brasileiros e brasileiras. Apesar de todo genocídio, feminicídio, transfobia, sexismos e apagamentos, nós temos sobrevivido. Porque nós temos sobrevivido há muito tempo, não é de hoje. Não é porque estamos mais visíveis que aprendemos a sobreviver. Nós aprendemos a sobreviver como gerações que não necessariamente se pariram umas as outras biologicamente mas ideologicamente, que se tentou apaga. E diz se isso é ou não é cultura? A forma de preservar esses saberes ao longo do tempo e de transformá-los também. Muito se tem avançado nesse sentido, e essa diferença maior é a resiliência da população trans.”
Jaqueline Gomes de Jesus (RJ) – Jaqueline Gomes de Jesus é professora de Psicologia do Instituto Federal do Rio de Janeiro (IFRJ Campus Belford Roxo). Doutora em Psicologia Social e do Trabalho pela Universidade de Brasília (UnB), com pós-doutorado pela Escola Superior de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas (FGV Rio). É pesquisadora-líder do ODARA – Grupo Interdisciplinar de Pesquisa em Cultura, Identidade e Diversidade (IFRJ). Foi assessora de diversidade e apoio aos cotistas e coordenadora do Centro de Convivência Negra da UnB. Pesquisa e leciona nas áreas de gestão da diversidade, trabalho, identidade social e movimentos sociais, com ênfase em gênero, orientação sexual e cor/raça. É investigadora da Rede de Antropologia Dos e Desde os Corpos e membro da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros (ABPN). É autora de dezenas de publicações científicas, dentre elas os livros “Transfeminismo: Teorias e Práticas” e “Homofobia: Identificar e Prevenir”; o e-book “Orientações sobre Identidade de Gênero: Conceitos e Termos”; e os artigos “Gênero sem Essencialismo: Feminismo Transgênero como Crítica do Sexo” e “Transfobia e crimes de ódio: Assassinatos de pessoas transgênero como genocídio”.
esse tipo de pensamento esclarece tanto, é tão profundo que penso que hoje serei uma bicha negra travestida de toureiro da musica do Caio Matoso, e ainda serei a bofetada na cara dessa gente pura e mesquinha que povoa nossa sociedade…