Edelson Santana

Agosto principia o inferno mato-grossense. A umidade do ar cai, as temperaturas sobem e o fogo revela a fragilidade oficialmente desprotegida de cada bioma. O mês, que de tão extenso nem parece passar, é apenas início de uma estiagem severa que mais e mais se agrava. Na capital, as máscaras exigidas pela pandemia minimizam também os efeitos da fumaça, neblina cotidiana de um inverno seco que esconde a cidade. E Mato Grosso, estado de tanta terra para pouca gente, não disfarça a cada ano a sua vastidão mal aproveitada representada por extensos descampados que produzem grãos.

Na secura desse tempo quase estéril, em que qualquer esforço humano se dá apenas pelo subsistir, me entreguei à leitura, em sequência, da trilogia de Luiz Renato – Matrinchã do Teles Pires, Flor do Ingá e Xibio – e do primeiro romance de Marli Walker, Coração Madeira, recém-lançado. A escolha de um livro a ser lido, para mim, nunca se dá de forma racional, vai mesmo da vontade que o momento estabelece. Dessa vez, pesou um interesse meu cada vez maior em entender a ânsia de seres humanos que se lançam em travessias, uma procura quase sempre heroica por um lugar no mundo motivada geralmente pela necessidade de a ele pertencer.

Cuiabá, a mãe de todos os outros municípios mato-grossenses, nasceu dessa ânsia. Exploratória por um longo período, à cata de índios e ouro, mas que abriu caminho para sonhadores que fundaram e, no transcorrer dos séculos, fizeram vingar a cidade. O mesmo ímpeto humano que décadas depois levou baianos à procura dos diamantes de Poxoréo, que por lá ficaram até adquirir e fazer produzir em terras devolutas. Rondonópolis, assim, multiplicaria sua gente em lotes e glebas, núcleos coloniais organizados a partir do surgimento do código de terras.

O idealismo bandeirante fez de Cassiano Ricardo o poeta aceito na república getulista para montar os contornos do que seria uma nova nação. A Marcha para o Oeste, como as bandeiras paulistas de séculos atrás, teria, então, o propósito de preencher o que se via como espaços vazios de territórios nunca antes explorados pela civilização. E o Estado Novo tentava, dessa forma, o redescobrimento do Brasil, um moderno sistema de colonização, que tomava posse dos sertões, a fim de ocupar, povoar e integrar.

Em Matrinchã do Teles Pires, esse espaço de colonização é bem definido: a cidade fictícia, cujo nome dá título ao livro, está localizada nas proximidades de Sinop, às margens do rio Teles Pires. Numa trama envolvente, realidade e imaginação, evento histórico e criação literária se entrelaçam na construção narrativa. É um espaço inicialmente utópico, em transformação, terra vista como promessa e que, por isso, atraía uma diversidade de gente. Se a intenção primeira é entender a coragem de quem deixa o lugar onde mantinha raízes em busca de melhor existência em chãos nunca antes semeados, a obra de Luiz Renato tem a grande vantagem de dar rosto e voz aos diferentes desbravadores.

A inconstância que marca o processo dinâmico de ocupação do norte de Mato Grosso caracteriza os personagens, que são representações de seres humanos comuns: o caminhoneiro que cruza o país, a prostituta de lugar nenhum em busca da sobrevivência pelo ouro dos garimpos, os novos lavradores sulistas de terras desconhecidas, madeireiros pouco sensíveis aos efeitos da devastação, professores conscientes de sua função social, políticos, padres, colonos e colonizadores. Entre tantos personagens, Pedro e Irene, casal que sintetiza em pensamentos e ações modos antagônicos de sentir o mundo, assumem o foco narrativo nos livros que completam a trilogia, Flor do Ingá e Xibio, respectivamente.

Luiz Renato em foto de seu perfil pessoal no Facebook

Nesse conjunto de atuantes, destaca-se um velho andarilho acumulador de crenças e sabedoria popular que, ao percorrer a cidade em sua sina andante, detém o papel de condutor da narrativa, amparado ora em mitos, ora em eventos históricos. Há ainda um narrador onisciente que analisa e opina sobre o fato narrado. É ele quem torna explícita a discrepância entre a promessa propagada de terra farta e para todos e os rumos que tomariam o novo município, nada promissores para a maioria dos moradores que o construíram. Em Matrinchã do Teles Pires, o narrador é coletor e regente de histórias de vidas muito pouco vistas, que toma partido e realça vozes que dificilmente seriam registradas pela historiografia oficial.

Dar voz, aliás, é a tônica de Coração Madeira, de Marli Walker. A paisagem do norte mato-grossense modificada pelo povoamento é pano de fundo para esse romance que narra uma travessia, um percurso interior que inclui a tomada de consciência sobre a condição feminina pela protagonista e a coragem para lutar contra adversidades de todos os tipos a fim de se construir a própria identidade. É narrativa de ruptura com a tradição opressora do patriarcado, aquela que só admite uma única voz, mas sem deixar de preservar as raízes. É história de quem refreia o grito diante do inóspito para descobrir a força que tem a sua própria voz.

Uma vez que os olhos de leitor reconhecem o trabalho estético empreendido na concepção da narrativa – a disposição em partes a apontar um movimento de evolução na linha do tempo, capítulos que retomam o episódio anterior, as imagens metafóricas que dialogam com a prosa de Clarice Lispector e a poesia de Adélia Prado, as canções populares que afloram reminiscências– só resta dizer que Coração Madeira é um livro de beleza ímpar. Nele, há poesia e afeto, inteligência e sensibilidade, e a emoção desperta a cada página está muito longe de ser gratuita.

O Mato Grosso narrado por Marli Walker é o mesmo de Luiz Renato: um pedaço da Amazônia em uma solidão devastada por ordem do progresso. Lugar onde as árvores, em sua rede familiar e comunitária, cedem espaço para a exploração humana. Isolamento desassistido que soterra em pó de serra os sonhos dos tantos zés que por lá chegaram. É um grande sertão de travessia perigosa onde o aprender a viver é o mesmo viver.

E setembro chega ainda em estio. As terras do Pantanal ardem. As árvores do Cerrado sofrem em sua quieta resiliência. A floresta amazônica também sente a devastação. Na depressão cuiabana, os habitantes de uma cidade inabitável tentam se proteger do vírus e da fumaça. Crimes ambientais são noticiados a contragosto dos ouvidos negacionistas oficiais. Abafo a angústia e penso mais uma vez no próximo livro a ser lido. Quase nunca é uma decisão racional, mas o certo é que sempre caberá a nós a responsabilização por nossas escolhas.

 

Edelson Santana é jornalista, mestre em letras e linguística e, antes de tudo, leitor.

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