Dia desses, passeando pela terra da garoa, fui abordado na estação República do metrô por um jovem que me pediu R$ 0,30. Saquei uma moeda de R$ 0,50 e lhe dei. Disse-me que estava dormindo e ao acordar percebeu ter sido roubado em uma bolsa e seu par de tênis. Vestia uma camiseta vermelha um pouco suja e um jeans surrado. Os pés meneavam o chão frio da tarde gelada de São Paulo. Logo que pegou a moeda foi em direção à saída da estação. E eu fiquei por ali, pensando se aquilo daria mesmo uma crônica. Ciente que sim, saí em busca de mais ingredientes para tal empreitada.
Segui até a estação Faria Lima de onde iniciei uma incursão pelo bairro de Pinheiros, que se estendeu à marginal homônima. O sol ia se desfazendo e a temperatura despencava. O trânsito na marginal era o de sempre, em se tratando de rush e da maior metrópole da América latina.
A imagem do rapaz volta e meia me assaltava a mente. R$ 0,30. Por que não R$ 1,00 como a maioria pede? O que faria com aqueles centavos de real, complementaria uma passagem de volta para casa? Teria casa, por acaso, o cidadão? A todo instante me deparo com a mendicância, o desemprego, as carências generalizadas que se espalham pela cidade. À noite teríamos a presença de Bolsonaro no Jornal Nacional, mas vou me abster de comentar qualquer coisa a esse respeito.
Um eco de torcedores reverberava pelos ouvidos; não podia ver de onde emanava, sequer decifrava o coro de vozes que urravam palavras de ordem em defesa de seu clube. Era noite de Libertadores, e na capital paulista o Santos receberia um escrete argentino para o tira-teima. Um refrão ressoava e, ao ouvir a palavra “alvinegro”, me dei conta de que eram torcedores do peixe que se dirigiam ao Pacaembu.
Lance por lance, a massa seguia em direção ao centro da terra, uma vez que o embarque se dá a trinta metros abaixo do rio Pinheiros. Pessoas se empurrando pela barriga, enquanto as mãos se ocupavam do telefone celular. A cena me lembrava vários filmes em que a massa se dirigia a um mesmo ponto. A música de Zé Ramalho que preconizava a vida de gado, coisas afins.
De volta à República, fico a pensar no mundo excludente em que vivemos. Revendo as coleções da Pinacoteca de São Paulo revisito as obras que retratam o século XIX, os retratos reais, a empáfia dos governantes e senhores de escravos. Comparo com a escravidão contemporânea da massa que enfrenta os horários de pico na volta para casa, quando paro para ler uma amostra grátis de um livro de Stella Florence, disponibilizado na WEB a título de divulgação.
Também eu fico sem saber a respeito do moço que me pediu a moeda. Seria verdadeira sua história? Teria mesmo dormido enquanto foi roubado? Teria inventado aquilo? Mas por apenas R$ 0,30 centavos? Preciso comprar esse livro de Stella para continuar a imaginar o que seria. Não que isso tenha alguma importância para esta crônica, para a minha vida, ou mesmo a dele. Mas pelo simples fato de que a imaginação tem que ser alimentada o tempo todo.
O homem que apenas geme e cospe, do início do livro de Stella, não me diz nada, mas o vagabundo (burguês ou não) de sua história, sim, embora o livro não trate disso, senão do que se anuncia na dedicatória, logo à página 5:
Dedico este livro a todas as incontáveis mulheres
(e homens) que se sentiram de alguma forma conectadas
a mim a ponto de desabafarem suas histórias ocultas
feitas de dor, dúvida, violência, medo e silêncio. Essas
pessoas estão todas aqui. E agora, você também.
REFERÊNCIA
FLORENCE, Stella. Eu me possuo. 1. ed. São Paulo: Panda Books, 2016.