Por Thales de Mendonça*
Recorrente no cinema como artifício de estímulo emocional básico, a intertextualidade vem se tornando uma arma eficaz em conectar os filmes com seus espectadores. Com inúmeras franquias lançando novos seguimentos a cada ano, seus filmes dependem cada vez mais de referências aos universos em que habitam para engatilhar emoções naqueles que os assistem. Se antigamente a intertextualidade nos filmes representava uma pequena parcela do sentido do filme ou da cena, hoje temos filmes inteiros construídos em cima deste artifício. Completando cinquenta anos de existência este ano, a maior franquia da cultura pop – Jornada nas Estrelas – lança seu décimo terceiro filme dia 1 de setembro. Construído sobre uma teia de intertextualidade, “Star Trek: Sem Fronteiras” vacila entre o triunfo e o temível fracasso.
Amplamente utilizada na música, na literatura e especificamente no cinema, a intertextualidade – a relação entre o texto presente e um subtexto pré-existente, calcado na cultura e no conhecimento do leitor – é um recurso que não só enriquece a interpretação como desenvolve um elo entre o que está sendo visto em tela, no caso do cinema, e a bagagem que o espectador trás para a sala de cinema. Em uma época onde diversas franquias atendem à diversos gêneros – Velozes & Furiosos, Mad Max para os amantes de ação, Jason Bourne para os aficionados por suspense policial, até mesmo Harry Potter retorna este ano com o novo “Animais fantásticos e onde Habitam” – e invadem o cinema em todas as faixas etárias; Procurando Dory e Os Caça-Fantasmas também reacendem suas respectivas franquias; espectadores são bombardeados com uma torrente de referências e roteiros construídos unicamente para alimentar os universos em que existem.
A princípio, o uso da intertextualidade não é um problema, esta conexão que fazemos com os universos cinematográficos é justamente o que nos coloca na posição de fãs. Compreender as referências e as conexões presentes em seu subtexto é aquilo que muitas vezes mantem o sentido de continuidade necessário para encaixar os roteiros de diversos filmes em uma única lente. Mas o uso excessivo do recurso pode não só atrapalhar como comprometer a imersão dos espectadores no filme.
Lançada incialmente nos anos sessenta, Jornada nas Estrelas já conta com seis séries televisas – uma sétima está prevista para janeiro – treze filmes, centenas de livros, quadrinhos e jogos; a franquia iniciada por Gene Roddenbery completa 50 anos este ano e comemora com seu mais novo filme, “Star Trek: Sem fronteiras”. Dirigido por Justin Lin, diretor responsável pelo sucesso da franquia Velozes & Furiosos, o novo filme é inteiramente calcado na intertextualidade. Com cenas de ação dinâmicas e bem dirigidas, uma história envolvente e um ritmo que o mantém colado na poltrona até o último segundo, o filme se apoia não só no entrosamento e na atuação do elenco para criar uma conexão instantânea com seus espectadores, mas depende diretamente das referências ao universo em que reside para sustentar seus alicerces.
Aficionado pela franquia, fui um dos sortudos que assistiu ao filme em sua pré estréia de aniversário neste sábado (30), oferecida pela Paramount devido exigência dos fãs, que inundaram com pedidos a empresa que só lança o filme oficialmente em setembro. Habituado com o universo da franquia, e rodeado de pessoas tão conhecedoras das relações presentes em tela quanto eu, não percebi de imediato o quanto este filme era feito especial e unicamente para nós, os fãs.
Preocupados em não decepcionar os adoradores de Jornada nas Estrelas, que reúnem pessoas de todas as idades, raças e credos – a série é justamente sobre um futuro de respeito mútuo e igualdade – o produtor J.J Abrams e o diretor Justin Lin, junto aos roteiristas de “Sem Fronteiras” construíram uma história que funciona sozinha, mas só ganha seu verdadeiro sentido quando encaixada junto ao universo a que pertence. As sequencias de humor e drama do filme, perdem um pouco de seu impacto emocional quando não devidamente referenciadas. Uma homenagem clara à serie clássica dos anos 60, o roteiro cita episódios, repete diálogos, e estimula o espectador visualmente com detalhes e designs retirados diretamente da série. Com 50 anos de vida, o que não falta é material para referenciar.
O que aparentemente é algo maravilhoso, um filme onde cada cena é um gatilho emocional para aqueles apaixonados pelo universo, pode ser também a arma capaz de pôr em perigo o sucesso do longa. Apesar da estréia promissora no exterior, o filme que passa agora por sua segunda semana de exibição na Europa e nos Estados Unidos não é o sucesso de bilheteria esperado pelo estúdio. Sofrendo com a data de estréia defasada – A China e os países da América do Sul ainda podem mudar esses números – o filme recebeu críticas positivas e adoração dos fãs, mas ainda não conquistou seu espaço entre o público não especializado. Dependendo fortemente da compreensão do universo da série, o filme pode não conquistar o grande público que busca no blockbuster destas férias uma aventura um pouco mais relacionável.
Apesar do excesso de intertextualidade, que coloca “Sem Fronteiras” em uma corta bamba entre o sucesso de bilheteria e uma possível ferida na vertente cinematográfica da franquia, o filme é uma trama recheada de ação, humor e visuais estonteantes. A computação gráfica e o 3D realçam a beleza de um universo que expressa um futurismo otimista em cada cena. Engraçado, com uma trilha sonora eficaz e atuações competentes, ainda existem milhares de motivos que tornam este filme uma ótima aventura. Sua mensagem positiva e a trajetória de redenção e redescoberta de seus personagens fazem deste filme não só algo fiel à franquia, mas aos princípios que ela transmite.
Para os fãs, um deleite. Para os desentendidos de Jornada nas Estrelas, uma excitante aventura. Para o cinema, mais um exemplo dos prós e contras da intertextualidade como base de seus filmes. Para as outras franquias, um aviso.
Para Jornada nas Estrelas, mais 50 anos. Vida longa e próspera.
*Thales de Mendonça tem 25 anos, é escritor e produtor audiovisual em São Paulo. Autor do livro de ficção científica “D3-VA”, trabalha no mercado há seis anos e escreve para o Cidadão Cultura às segundas feiras.