Sentei entre as suas paredes coloridas e acompanhei o devir das pessoas. O estranhamento, encantamento, contemplação. Mergulhei nas cores e sentidos. Passei muito tempo sozinha pensando sobre a sua arte. Depois de circular por todos os andares da Bienal de São Paulo, após um dia de imersão e espera por sua presença, o vi sentado, ereto, no banco localizado no centro de suas instalações. Estava conversando com uma monitora e sentei-me ao seu lado para escutar suas palavras.
É difícil escrever sobre Wlademir Dias-Pino. Decupei 20 minutos de entrevista que pareceram horas, pois seu conteúdo é ex(in)tenso. E além do tempo em que gravei, ficamos quase duas horas conversando. Fico reticente sobre falar de alguém que considero tão genial e que sinto grande admiração, por seu modo de se relacionar com a própria arte, pela qualidade indiscutível de seus projetos. É um gigante. E senti isso pela vivacidade, pelo raciocínio conectado com algo muito maior do que a matéria, consciente, pulsante, do alto dos seus 89 anos.
Sua exposição O poema infinito no Museu de Arte do Rio (MAR), que entre outros projetos (Wlademir recusa chamar suas peças de obras de arte, para ele são projetos, sem conclusão), abrigou a Enciclopédia Visual. Para a 32ª Bienal de São Paulo: Incerteza Viva foram produzidas 300 peças inéditas, afinal, a exposição no MAR havia sido prorrogada até setembro.
“Queriam a Enciclopédia Visual, então pensei em fazer coisas inéditas e acabei fazendo mais do que tinha lá no MAR. Aqui (Bienal) tem 500 imagens. E fiz as placas também no jardim da Bienal. foi um mês e meio mais ou menos para fazer tudo. Três turnos: de manhã, de tarde e de noite.”
Tá, mas como assim enciclopédia visual? Quando pensamos em enciclopédia já vem em mente a imagem de livros enormes com significados para palavras, termos, enfim, conhecimentos diversos sobre o mundo. O que é que esse Wlademir pretende fazer? Um trabalho para catalogar imagens?
“A enciclopédia é um objeto educacional, o conceito nasce na Europa mas era direcionado ao aprendizado dos ofícios, como construir uma casa, trabalhar com couro, etc, veio a industrialização e esse conceito foi para a América do Norte e lá tomou aspecto de pensamento universitário. A grande universidade seria aquela que tivesse a sua enciclopédia, então pensei para a América do Sul, principalmente no Brasil, uma enciclopédia que não repetisse a americana. O Brasil precisa encontrar sua cultura verdadeira e contemporânea. Então, ao invés do verbete, temos a imagem como referência”, explicou.
“O olho, por exemplo, procurava imagem dos olhos, em que diversas maneiras o homem na história da civilização viu e documentou o olho. Mas, acontece o seguinte, a imagem tem muitas entradas, não é como a palavra, que por exemplo você fala mesa é mesa mesmo, é até redundante. Mas a imagem não, é emblemática, não é ordinal, que vem primeiro A, B, C, é cardinal, é um todo, não é uma parcela, matematicamente”.
“O olho também entra ali na violência através de Picasso”.
“Nessa civilização que todo mundo produz imagem teremos um dilúvio de imagem tal, que os governos perderão a classificação, e perdendo a referência não há poder e será a maior crise na história da humanidade. Não é que a enciclopédia vai resolver a classificação, mas ela dá um alerta que precisamos tomar uma providência nesse sentido, de voltar todos os homens no sentido de procurar uma classificação para a imagem, para que não haja esse caos futuro”.
“No outro item do corpo humano, o homem se diferencia do animal por causa da mão e da fala. A mão está perdendo a função, já está na ponta do dedo da tecla, mas se o homem perder o tato, perde o afeto, o amor, carinho, até o sexo. É necessário que o homem comece a encontrar outra função, não mais artesanal como foi, mas uma função imediata para participar com o cérebro de uma forma mais ativa e direta, como o olhar trabalha com a imagem.”
“O homem com a medida do mundo, todas as civilizações resultam em um Cânone que é a imagem do homem ideal daquela civilização, fisicamente, umas são oito cabeças, outras já são 18 narizes e assim por diante. Então aqui estão as coisas temáticas, cada espaço desse, não é uma moldura quadrada todas iguais, são formas angulares, que dá uma diversidade de espaço, não é mais o enquadramento, mas um território para esse título dessa imagem, de classificação.”
Wlademir analisa que a proposta é um pouco arquitetônica, afinal, calculou grandes áreas que de longe pode se ver a estrutura cromática, abstrata e sua interferência na arquitetura. “Temos ainda dois tipos de leitura, uma a um palmo do nariz que é o livro e outra a distância que é o gênero de cartaz, mural. Procurei montar essa exposição com um desafio, então você teria uma coluna inclinada que contraria a lei da gravidade, e quando você se aproxima tem a leitura de perto dos textos”.
“Para mim não tem mais esse negocio de visão de gêneros antigos, eu acho que o homem tem que criar novos tipos de gêneros para se adaptar a este explodir da imagem e de todo mundo produzindo ao mesmo tempo.”
“A classificação que encontrei para criar uma sequência: peguei a figura do homem, o primeiro volume é o cabelo, a história do penteado na humanidade, ai vem o chapéu que vai sobre a cabeça, a evolução das formas dos chapeis e dos elmos. Depois vem o olho, o nariz, a boca, os braços, a mão, a frente do homem, as costas do homem, o pé. Passa para outra coisa, para a natureza por exemplo vegetais, animais, insetos, e tudo isso vai uma classificação ordenando possivelmente o mundo que existe e que estamos convivendo.”
“Cada volume é uma imagem que procura formar uma tese em torno, cada coleção dessa é um ensaio de uma tese visual e não discursiva. Tenho projetos e não obras, obras se fecham. A enciclopédia faço desde criança, não tem fim, é inconclusa. A própria imagem vai se renovando e ela vai se renovando, é uma obra em processo”.
“São legendas e títulos de algumas imagens que elas estão falando. E tem outra coisa, por exemplo, a televisão não é um aparelho inteiramente visual, porque é um conjunto do rádio e teatro, então ela não tem a sua linguagem. E qual seria a linguagem, a imagem não ter sentido sozinha e nem o texto ser sozinho e ter sentido, então a combinação dos dois daria uma interpretação do texto e da imagem, e não como ideograma chinês”.
“A escrita era misturada com a imagem, a grande descoberta de Colombo é anunciar o aparecimento do livro, de Guttenberg, a invenção do tipo móvel descobriu o livro que é o instrumento mais prático que o homem já construiu”.
“Quando isso aconteceu as coisas eram feitas em uma xilogravura, madeira grande, e a pessoa fazia a ilustração e o texto, e as duas visualidades tinham uma coerência. Quando vem o tipo industrial separa a imagem do texto e a imagem no início ficava subordinada ao texto. Mas a imagem foi crescendo e passando a ser imagem, não mais um elemento decorativo, acabou superando o discurso que já caducou e inauguramos uma civilização puramente visual”.
Tudo isso me lembra a primeira vez que o vi, quando recebeu o Doutor Honoris causa pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) e gravei um pequeno trecho em vídeo, em que um Wlademir sorridente diz: “Sou um homem de quantidade”. E suas 500 peças na Bienal, comprovam mais uma vez sua imensidão e complexidade.
o Vlademir é poesia viva andando por aí…
Parabéns Marianna a matéria ficou belíssima. Wademir é admirável. Simpático, atencioso e amoroso. Como você mesma disse: É um gênio. É a própria poesia em ação. Amoo.