Por Glória Albuês*
A primeira sensação é de estar certa no lugar certo a me reconhecer entre meus iguais. O mesmo jeitão, o sorriso largo que se abre quando me identifico como cuiabana, afinal quase todo corumbaense tem um tataravô, uma bisavó avô, mãe, algum sobrinho, tio próximo ou distante que vem … de onde? De onde? Ora, dona menina, é claro… de Cuiabá. Quer ver, escuta!
A partir daí o que era de se esperar. Os corumbaenses mesmo aqueles que não vieram destas plagas a falar de seu amor por Cuiabá e eu a retribuir os sentimentos de afeto por essa incrível cidade e sua gente hospitaleira. Isso aconteceu com todos que lá encontrei sem nenhuma distinção, do velho cururueiro ao jovem empreendedor de família cuiabana que possui um bar super transado onde lá pelas altas horas corre um rock’roll da pesada.
Foi aí que pensei. Não tem jeito somos mesmo farinha do mesmo saco e não há divisão geopolítica que dê conta disso. Nem coração que desconsidere. Aliás, encontrei uma prima chamada Cira que não via há décadas. E não é que a danada me reconheceu de pronto? Abraços. Emoções.
Adorei passear por Corumbá em suas largas ruas de paralelepípedos, descer e subir ladeiras, contemplar seu casario colonial e art decô, o porto geral, provar a salteña e a paceña, influencias bolivianas já devidamente incorporadas à gastronomia local. Fui sendo tomada por um sentimento misto de saudade, ternura, pertencimento, chegava até a reconhecer certos odores o que levou ( ou elevou?) o meu espírito à delicias inexplicáveis. Coisas d’alma.
À bordo de um pequeno barco ao lado da minha querida amiga e talentosa escritora Lenilde Ramos (acabou de lançar o seu primeiro romance “Histórias sem Nomes”) navegamos pelas águas caudalosas do rio Paraguai entre camalotes e vitórias régias. O sol se pondo no horizonte dourava a todos: gente, água, pássaros e bichos. O porto e a cidade. Chorei de puro alumbramento.
Impossível ver tudo, é claro. Em meio a tanta efervescência não houve outro jeito senão deixar a vida me levar à moda Zeca Pagodinho. Foi assim que me deparei com o som incrível da harpa de Fábio Kaida e sua banda, músico sul-matogrossense descendente de japoneses que transita de um repertório tradicional de polcas e chamamés à uma levada pop que traz possibilidades surpreendentes ao instrumento.
O grupo peruano Del Pueblo del Barrio que mescla musica andina e canções de forte cunho social ao som de um rock progressivo de alta qualidade.
O músico paraguaio Rolando Chaparro surpreendeu com seus temas instrumentais baseados em influencias afro-paraguaias pouco conhecidas entre nós brasileiros, embalados por blues e uma furiosa guitarra.
Antecedendo a apresentação de Criolo, a força inovadora do grupo de rap indígena Brô Mc’s da etnia Guarani-Kaiowá levou uma batida poderosa que denunciava em português e tupi-guarani a discriminação e a violência sofrida por seu povo. Empolgou o público. Eu, então…
A tradicional e boa música sertaneja de Mato Grosso do Sul também comoveu e empolgou o público ao reunir dois ícones no show “Memórias”: o violeiro Aurélio Miranda com suas músicas autorais e a dupla Tostão e Guarany.
Outra palestra que também fez a minha cabeça foi a do ex-Secretário de Cultura e Desenvolvimento de Medellín Jorge Melguizo que falou sobre o longo e árduo processo de mudanças que a sociedade civil organizada realizou em Medellín saindo da extrema violência urbana para se tornar um exemplo de cidade que se transformou por meio da cultura cidadã.
Nestes tempos duros em nosso país onde a violência mata tantos jovens negros e pobres nas cidades, trabalhadores no campo, indígenas de várias etnias, comunidades LGBT, a lista é enorme, bem que poderíamos nos inspirar neste exemplo colombiano. Dá uma tremenda esperança, É viável. Mas cadê a decisão política?
Uma atividade para alimentar o corpo e o espírito foi o Quebra-Torto Com Letras onde era servido comidas típicas como paçoca de pilão, Maria Isabé, feijão empamonado animando o bate-papo sobre literatura. De sobremesa, apresentações musicais como a do genial Gilson Espíndola. Nada mais saboroso.
Representantes de grupos religiosos de matrizes africanas como Candomblé e Umbanda fizeram seus rituais em frente ao rio celebrando os orixás.
Entre o Circuito de Cinema, Contação de Histórias, Palestras e Seminários, Encontros, Exposiçoes de Artes Plásticas ( com especial referencia à Jorapimo e Jonir Figueiredo), Oficinas para estudantes, Peças Teatrais, Espetáculos Circenses (aplausos para o Circo Medellin da Colombia), shows de artistas nacionais como Criolo, Martinho da vila, Danielle Mercury e Roberta Miranda, (nomes escolhidos em audiências públicas em Corumbá) me perdi e me encontrei.
Ao final, quero cumprimentar através do Coordenador Geral, Thomás Ramos Escrivano, do produtor executivo, Jerry Espíndola, e a toda a equipe afiadíssima que conseguiu realizar um Festival sem atropelos, falhas técnicas ou atrasos. E o que as vezes deixa muito a desejar nesse tipo de evento: com muita cordialidade, disponibilidade e simpatia.
Escrevo estas mal traçadas linhas da varanda de minha casa ao amanhecer do dia no Pantanal mato-grossense, a beira da Baía de Chacororé. Ao contemplar suas águas douradas pelo sol me vem a profunda convicção que todos somos um só nessa imensa Bacia do Prata. O meu coração bandoleiro certamente ainda navega rio abaixo ao final da tarde pelo Paraguai ouvindo as canções que ainda se ouvem lá. Pacientemente nesta manhã alaranjada meu peito aguarda a sua chegada rio acima nas águas do amado Cuiabá.
Glória Albuês é cineasta, pesquisadora, roteirista, escritora, gestora pública, animadora cultural e muito mais...
Li com atenção o texto de Glorinha Albuês, mergulhando na memória recente dos acontecimentos do 14º Festival América do Sul Pantanal, que aconteceu em Corumbá-MS, de 24 a 27 de maio. Para mim, que acompanho esse projeto desde a primeira edição, foi importante revê-lo sob o olhar atento de uma produtora cultural. Glorinha se desdobrou em ver, ouvir, questionar, compartilhar e se renovar com a mistura provocante de brasilidade, regionalidade e latinidade que esse evento oferece. A cuiabana se identificou com fachadas, esquinas, com o sotaque da fala e da música, com o rio pantaneiro e até com as ladeiras que se aventurou em subir. Como ela mesma diz, Corumbá é um elo que permanece vivo em suas raízes. Então, aproveito para dizer que, Corumbá também é um elo que faz nossa história e nossa amizade cada vez mais vivas. Até o próximo, amiga!
Que delícia de texto 🙂
Amei o texto, descrito fiel e tão lindamente. As mais belas lembranças afloraram, certeza de que o amor pela nossa terra é o mesmo, ainda um só, o de quando deixei minha cidade natal, Ladário-MS, em 1977, e criei novas raízes na então nossa Capital, Cuiabá-MT. Que continuem trazendo, e o povo, o Brasil todo, reconhecendo e prestigiando a força desse Festival, para nossa união. Obrigada, Glória Albuês, por esse presente.
Glória Albuês é uma pessoa fonte, jorra alegria de viver, criatividade e seu ativismo é legítimo em muitas causas pela cultura matogrossense, mas não só. Ela é cidadã do mundo, tem um coração cigano cheio de luz, antenada acompanha tudo de mais contemporâneo, ela me inspira demais! Grande teatróloga, cineasta mas não é só isso tem uma energia feminina que não arrefece, com o tempo fica cada vez mais forte!!!!
Desde “América”, um conto da Gloria que me provocou pelo estranhamento que a arte propicia sei que essa amiga querida escreve como poucos pois tem em Teresa a outra escritora da família.O que ela escreve é sempre bom! Seu olhar critico cuiabano eu sempre admirei. Ainda mais quando ela fecha um dos olhos e cochicha pra gente aquilo que vê. Isso é só dela que encarna aquele povo do tempo de olhar na janela e na calçada do interior comentando quem passa. Quando escreve sobre a nossa America do Sul ela sublima nosso sonho antigo desde quando nos entendemos por gente. Esse sonho continua na sua escrita e generosidade com esse Festival. Em mim a imensa vontade de empatar o desejo de gestões e a necessidade dos artistas. Afinal de contas temos de entrar no capitalismo a partir do reconhecimento de nossa atividade como seres humanos que sobrevivem do interpretam para o mundo através das varias formas de expressão. Parabéns Glorinha mas depois vamos cochichar.
Vamos sim cotchitchar, amigo querido. Mas com o devido cuidado pois como diz o cuiabano “Quem cotchitcha o rabo espitcha”..rss.