Sentei à mesa para almoçar acompanhada de suas palavras que me alimentaram mais do que um prato de comida quente. Suas palavras provocaram um misto de sentimentos. Senti sua poesia com emoção, senti sua necessidade de lutar contra as imposições de uma sociedade hipócrita, misógina e machista. Nosso encontro virtual despertou a urgência da qual falamos em nossas conversas. E por mais que eu ainda não conheça o toque da sua pele, sua voz reverberou em meus sentidos. A urgência de agir em um mundo que cada vez mais reprime a diversidade e segrega os “diferentes”. A urgência de cantar, de poetizar, de fazer com que a sua arte venha ao mundo. A urgência de ocupar espaços públicos, de provocar debates, reflexões, de questionar os padrões, de levantar questionamentos que vão muito além das ilusões mantidas em nossas bolhas virtuais.

Aos 26 anos, a artista santista Maria Sil canta sobre ser soropositivo em uma sociedade arraigada em seus preconceitos. Canta a poesia de quem faz resistência frente a tanta injustiça. E toda essa urgência que ela carrega me invade em cheio, é o que eu sinto também, todos os dias, ao refletir sobre a importância do envolvimento, tanto político quanto social. Sil não tem medo de cantar sobre essas urgências, de expor sua condição para que outras pessoas possam se identificar e sair desse “velho armário novo” como entoa na canção Olhos Amarelos. “Para colocar essa música no mundo eu precisava assumir meu estado sorológico”.

O momento do mundo inteiro parece o mesmo: uma onda fundamentalista proliferada através de discursos de ódio que aumentam ainda mais os abismos que nos separam. Entender a importância de uma resistência artística é fundamental. E por isso, escutar o que Maria Sil tem a dizer, enquanto artista soropositiva e independente, é dar vazão à uma voz que revela as fraturas de um cotidiano que na maioria das vezes, preferimos não enxergar.

“As pessoas não replicam porque tem medo de replicar esse vírus, a sorofobia chega nesse nível. Se eu curto uma página sobre AIDS, se compartilho uma notícia sobre AIDS é suspeito, perceba quantas pessoas têm isso, ainda mais dar voz a uma cantora que fale sobre o tema, que traga o tema, que é o tema”.

“Ser artista que vive com HIV e faz da AIDS alimento”, assim se define.

E essa arte vem da infância escrevendo poemas e canções, compartilhando com sua mãe, também poeta. A emoção ao escutar música a levou aos estudos. Passou pelos cursos de teatro e chegou até o Conservatório Musical de Cubatão. “É literal quando eu digo minha mãe é poeta, é real, minha mãe é uma mulher de 66 anos, com origem na periferia rural do Vale do Ribeira, mas desde cedo apaixonada, desde 12, 13 anos, apaixonada por literatura e poesia, devorava livros e poemas”. A relação da mãe com a arte inspirou a poesia e a emoção que afloram da artista.

Maria Sil fala da sua mãe, mas também de todas as outras mães. “A LGBTfobia tem um traço interseccional do machismo e da misoginia que culpa a mãe, ninguém culpa o pai, aliás, querem culpar o corpo, o corpo LGBT. Não culpem as mães, elas fizeram poesia, é isso que elas deram para o mundo”.

Essa reação conservadora à arte e aos corpos também está na pauta e Maria Sil discorre sobre as violências sofridas e a censura judicial que ocorreu com a peça “O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu“, que retratava Jesus como uma mulher trans, personagem vivida pela atriz trans Renata Carvalho. “Há censuras evidentes e temos um período de confusão onde há censuras judiciais, isso é muito grave. E também uma censura estrutural quando há uma hegemonia branca, quando corpos transexuais e travestis não conseguem emprego dentro da arte. Aí entra a questão da representatividade, que o Monarte (Movimento Nacional de Artistas Trans) tem lutado, vejo isso em relação ao HIV, quando negam espaço para uma arte que fale sobre AIDS, não é uma censura judicial, mas é uma censura estrutural, e silenciosa. Mas eu acredito que boa parte dessa reação pesada que temos sofrido é um pouco consequência dos nossos avanços. Esse mês no Itaú Cultural vai ter uma Mostra sobre sexualidade focada na vivência soropositiva, estou com vários amigos na programação, artistas, ativistas, que vivem com HIV como a Micaela Cyrino, o Flip Couto, dentro dessa programação, é um avanço”, conta Sil que também cita o artista Kako Arancibia, com a performance Contagiar.

Arte enquanto manifesto

Para alcançar mais pessoas com seu trabalho e chamar a atenção para a questão política, da necessidade de criminalizar a LGBTfobia, Sil lança uma campanha de financiamento coletivo para um vídeo-manifesto da canção Húmus.

A pergunta principal do vídeo é: quais planos de governo pautarão os direitos das populações LGBTQ+? Apontando o suprimento do respeito à identidade de gênero e orientação sexual no texto final da BNCC (Base Nacional Comum Curricular) e a importância da consulta pública SUG 42/2017 num novo caminho para a criminalização da LGBTfobia no Brasil, Maria Sil promete alinhar arte e política no seu novo trabalho, em um ano de crescente pensamentos fascistas no país.

A urgência de escutar 

É inevitável abordarmos pessoas emblemáticas para o ano de 2018, como a Matheusa e a vereadora Marielle Franco. As duas foram executadas este ano, cada qual por um motivo, cada qual com sua história. Mas são execuções que revelam a urgência de escutarmos diante do silenciamento brutal dessas pessoas que lutam e resistem. Essas pessoas que só tem essa opção: ficar e fazer uma diferença na realidade. E são elas, que assumem a linha de frente, e que são capazes de mover estruturas tão arcaicas na sociedade, que estão sendo executadas. O recado é dado: não ousem mexer nas estruturas.

“Vemos as pessoas falando da Matheusa, da Marielle Franco e eu só penso, porque não antes? Por que só viralizam após a morte? E nós que somos tocados por ela, só a espalhamos diante de sua execução? Não esperem nos matar. Precisamos fortalecer o corpo do outro, nos citar, nos ampliar. A morte de Matheusa, especialmente, me toca muito, enquanto se identificava como não binária, o quanto a não binariedade, e a exclusão desse corpo não binário afetou o psicológico dessa menina”, questionou Sil, que acrescenta: “Eu sou muito da urgência. Lembro quando fiz a letra de Olhos Amarelos, eu senti uma urgência, eu olhei e falei ‘isso é urgente ser dito’. Quando a Micaela Cyrino fez a performance Cura e se apresentou aqui em Santos, ficou tão evidente o debate do corpo, a vivência da mulher preta com HIV, eu olho aquilo e penso isso é urgente. A arte dela é urgente. Eu só penso na urgência”.

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Marianna Marimon, 30, escritora antes de ser jornalista, arrisco palavras, poemas, sentidos, busco histórias que não me pertencem para escrever aquilo que me toca, sem acreditar em deuses, persigo a utopia de amar acima de todas as dores. Formada em jornalismo (UFMT) e pós-graduação em Mídia, Informação e Cultura (USP).

2 Comentários

  1. Parabéns Marianna pela excelente matéria! Sensível, poética e urgente. Parabéns ao Silvino pelo trabalho e de trazer um tema tão importante como o HIV/Aids. Avante Silvino, Avante Cidadão Cultura! <3

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