As garças são flores brancas nas árvores (LEAL, 2016, p. 16).

As batatas têm aqueles olhinhos estranhos que a gente precisa tirar com a ponta da faca (idem, p. 21).

Os homens, ah, os homens caminham sempre por aí. Vejo muitas igrejas, mas não ouço sinos. Espero a chuva das quatro, me dizem que deve chegar antes das três. Almoço um prato feito em restaurante simples. Mesas e cadeiras dividem espaço com a banca do bicho. Um orelhão na parede me assusta. Ninguém liga. Ninguém toca. Ele não toca para ninguém.

Peço o prato e a moça do balcão, envolvida em uma prosa, chama pela mãe. Ela me atende. A mãe. Sento e aguardo a comida. Não quero beber nada. Apenas como. Vejo o movimento na banca. Maior que o do balcão. O prato chega. O rapaz que distraía a moça se ausenta e caminha pelas minhas costas. Em pouco tempo desabrocha de sua boca uma voz grave. Ele canta Peninha. A moça do balcão observa. Peço um café. Penso no jacaré. Bem que podia dar 58, se eu fizesse uma fezinha. “tudo era apenas uma brincadeira…”

“NO INÍCIO anoto rasuro jogo fora. corto sem pudor aprendi com ela. rabisco” (LEAL, idem, p. 13). O jogo da escrita produzindo cenas dentro de um apartamento. Como o quarto em que me encontro, eu, Xavier de Maistre, e o mestre Machado de Assis. Lá fora, chove.

Dia seguinte provo o pato no tucupi, depois de trinta anos, espécie de madeleine. Lembro de Cabo Frio e da amiga paraense que fazia o quitute. Passeio pelas docas, Ver-o-Peso de cada lembrança retratado em minimalismos. Depois o encontro com amigos rappers periferindo a vida de poesia. Troca de ideias com a força popular. MCs da grande Belém no entorno da Basílica de Nazaré. Penso no Círio e seus mais de dois milhões de seguidores. Carimbolou.

A semana acadêmica começa com o XXVII Colóquio Internacional de Professores de Literatura Portuguesa (ABRAPLIP), na Universidade Federal do Pará (UFPA). O professor Carlos Reis, da Universidade de Coimbra, profere a conferência inaugural, intitulada “Narrativização do espaço e travessias do tempo: Cesário Verde, Bernardo Soares e José Saramago”. Destaco da conferência a ancoragem conceitual em abordagem que privilegia a espacialização da cidade de Lisboa nos três autores. Sobretudo essa visão de uma natureza psicodinâmica e situacional do espaço narrativo, como deixa claro. As regiões do Chiado e da Beira são centrais para se fundamentar o discurso da flanerie citadina.

“NO MEIO DA TARDE foi no tempo em que escrevia horóscopos para o jornal e comia banana split na confeitaria da esquina” (idem, p. 18).  A chuva insiste em me manter preso e a leitura urge, surge como espetáculo de outra aurora. Participo do lançamento coletivo de livros com minha trilogia amazônica. Vendo alguns, troco outros, vida que segue. O congresso prossegue com comunicações, plenárias, conferências.

Misturo fragmentos alheios enquanto a mulher de branco [de que fala Alana] dança entre o insólito e o fantástico – psicopatia do real e do imaginário. O menino é o pai do homem [Maria Elvira] – na cartografia do desejo o extrassensível aparelho de ouvir traz o gatilho do pensar – metáforas da duração. Provar – deixar claro – revelar o sentido [Kayro], simples ausência de objetos em relação ao sujeito, digo olhando para o Welington. Sísifo do registro civil: E agora, José, assinalo por fim estendendo o cumprimento ao Paulo.

Ao falar sobre a relação entre intelectuais brasileiros e portugueses, a professora doutora Maria Aparecida Ribeiro toma como ponto de partida e de chegada a figura poética de Manuel Bandeira. Mapeando sua escrita com interfaces que o ligam a Camões, Sá de Miranda, Bocage e Antonio Nobre e na outra mão com Alberto Serpa, Antonio Luis Mota, Cristovan Pavia, Sophia de Melo Andersen, Alexandre O´Neal e José Blanc. Ribeiro nos confidencia, por fim, que essa visão dilatada surgirá em forma de livro, cujo título se anuncia desde já: “Manuel: bandeira de uma língua”.

“SOBRE A MESA DA SALA. BANALIDADES. Esticar o fio tecer paisagens. Nada disso me arrebata” (idem, p. 24). São outras cenas, não obscenas, não de Jorge de Sena. Passagens feito loteria cravo seus números na dupla sena. Acerca das travessias poéticas, o professor Jorge Fernandes da Silveira, discorre sobre “Novas visões do imaginário português” com a obra de Mario Claudio. “Os naufrágios de Camões”, de 2016 trazem à tona a islãmofobia de Luiz Vaz, a serviço de Dom Sebastião.

Monumento Aos Descobridores, Lisboa, Portugal

O percurso abarca os verbos singrar/sangrar/sangrée, com apoio explícito em Cesário Verde. Na mesma plenária, Ida Alves apresenta a poesia como travessia de espaços, cultura e artes. Izabela Leal coordena os trabalhos da mesa. Quieta, na observação atenta dos movimentos de corpo e fala. Mas é com o tema de “Presente e passado na Literatura Portuguesa” que refletimos a partir do exílio e desterro, com Maria Helena Santana.

Com Garret e Herculano visualizamos oposições entre França e Inglaterra na composição de um passado guerreiro, de dominação, para chegarmos ao cais da desterritorialização total dos emigrados/imigrantes que se dirigem ao velho mundo. A identidade cosmopolita de Kalaf. Ninguém solta a mão de ninguém, quer seja para andar junto, quer seja para isolamento territorial. “In memoriam. A fotografia não vem do olho e sim do dedo” (idem, p. 26).

Penso em Natalia Brizuela e seus derivativos literários para a fotografia. Frame a frame. Quadro a quadro, sem movimento para não ser cinema. “A coragem de demonstrar o medo” foi servida por Rosane Zanelato. E que coragem, segundo a pesquisadora que desvenda os caminhos de Gonçalo Tavares em busca das Índias camonianas. O encoberto aqui é o próprio medo.

Luciana Namorato traça aproximações entre Machado de Assis, Garret e Camilo Castelo Branco. Machado e Camilo usavam pince-nez, bigode, suas sobrancelhas eram similares, e as fotos de perfil sugeriam mesmos movimentos. Os cabelos de Garret e Camilo tinham o mesmo corte, ondulação, penteado. Mas a barba estava presente em Garret e Machado, não em Camilo. A sexta-feira chega e o encerramento do evento se anuncia.

Teresa Cerdeira apresenta Jorge de Sena sob a égide de um “Eros contra a melancolia”. Traçando oposições, a professora e pesquisadora destaca o papel da poesia no confronto, ludibriando a fatalidade. Gilda Santos encerra o congresso com o tema “Diálogos políticos e múltiplas travessias em ´O Físico Prodigioso´, de Jorge de Sena”. Aqui a cena é outra, uma visão panorâmica da complexa produção literária e crítica do pensador que atravessa o Atlântico para fugir do salazarismo e foge do golpe de 1964, em direção aos Estados Unidos da América.

Izabela Leal

“OUTRA PARTE DA CASA E DO DIA. A mulher desconfiou que o marido tinha uma amante porque ele estava cantando na cozinha” (idem, p. 40). Mas a quem os males espanta, aquele ou aquela que apanha, aquele ou aquela que espanca. Saio da Universidade do Pará passando antes pela editora, onde adquiri “a intrusa”, de Izabela Leal e “Todos os Santos”, de Adriana Lisboa. Pego o ônibus para o centro antes da chuva, que ontem me apanhou em cheio. Desço nas proximidades do Ver-o-Peso e sou alcançado por ela, na esquina da João Diogo com a Dezesseis de novembro; e hoje são oito, ela chega com oito dias de antecedência. A data, não a chuva.

Estou na companhia da intrusa e de todos os santos. As horas vão passando e a saudade já me enternece, feito uma prece por retorno breve. Quarto de hotel. Pego a intrusa e a tomo-a nas mãos. “NA CAMA. UM DOMINGO. É verdade trabalhei no jornal faz muito tempo. Até fiz comentários na coluna esportiva. Foi só pela grana. Não gosto do discurso jornalístico” (idem, p. 45). Não sei se questão de pressão, se questão de decoro. “Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória” (idem, p. 66).

Termino de ler a obra. Lembro do discurso final da professora Germana encerrando o congresso, agora pouco. Ela saudava o respeito à Constituição, por conta dos últimos acontecimentos que preservaram um mínimo de esperança ao povo brasileiro. Que os ecos do lusitanismo e da independência das nações africanas de língua portuguesa tenham nos ensinado alguma coisa nesses dias agradáveis que passei aqui em Belém.

 

REFERÊNCIA

LEAL, Izabela. a intrusa. Rio de Janeiro: Garamond, 2016.

 

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Ao completar vinte anos da publicação de meu primeiro romance, fecho a trilogia prometida com este volume. Penso que esse tempo foi uma graduação na arte de escrever narrativas mais espaçadas, a que se atribui o nome de romance. Matrinchã do Teles Pires (1998), Flor do Ingá (2014) e Chibiu (2018) fecham esse compromisso. Está em meus planos a escritura de um livro de ensaios em que me debruço sobre a obra de Ana Miranda, de Letícia Wierchowski e Tabajara Ruas; o foco neste trabalho é a produção literária e suas relações com a historiografia oficial. Isso vai levar algum tempo, ou seja, no mínimo uns três ou quatro anos. Vamos fechar então com 2022, antes disso seria improvável. Acabo de lançar Gênero, Número, Graal (poemas), contemplado no II Prêmio Mato Grosso de Literatura.

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