Leonardo Roberto*
Em uma grossa colcha de retalhos vermelho-alaranjada disposta em uma das paredes da galeria, uma frase me chama atenção, em meio a inúmeros símbolos e representações provocantes, em letras capitais: A ARTE ARDE. Um pequeno fragmento de texto escrito em um assemblage de imagens e cores que perpassam umas pelas outras, tal como os fios que estruturam a malha de um retalho. Por mais que uma simples frase seja pouco para representar a produção de Vitória Basaia, é possível sentir a ardência de sua vida transmutada em obra.
Os pigmentos característicos do cerrado presente em parte de suas obras expostas suscitam esse calor, remetem ao sol quente que atravessa as árvores retorcidas e atinge o solo vermelho, abrasando o arenito que vive e dá vida. A terra avermelhada, o contínuo movimento de criação geram uma realidade que vai além do idílico cultuado tanto na visão recorrente sobre a natureza quanto na arte ocidental consolidada.
A arte arde e a de Basaia vive, parte de um nexo orgânico, vida e obra se fundem e isso ficou claro, ao conhecer a artista depois de apreciar suas obras. A presença do feminino, da gestação e criação contínua da vida, marcam sua produção, como é pontuado por um grande conhecedor da obra de Vitória, por inúmeras vezes curador de suas exposições (assim como nas quais esse trabalho se baseia), José Serafim Bertoloto:
“Vitória Basaia pode ser considerada uma das mais singulares artistas em Mato Grosso nas últimas duas décadas. Traços que garantem essa singularidade são notados, com facilidade, tanto em sua obra quanto em sua personalidade. A respeito de sua vida, Vitória Basaia, que merece uma dedicada biografia a ser feita posteriormente, tem na força feminina seu traço mais distintivo.”, (BERTOLOTO, 2014).
Para além da mera representação da feminilidade, por meio de signos e subjetividades, é a força feminina que dá o tom da obra. Eduardo Ferreira atenta para o fato de Vitória ser uma das poucas artistas consideradas brut no país, o que nos leva a pensar em Jean Dubuffet e a sua missão de buscar fontes alheias à tradição estética ocidental. Sua produção soa como espontânea – confirmado pela autora nas agradáveis conversas que aconteceram nas exposições em questão – e autêntica, originalidade que traz o estigma/benção de marginal, remetendo ao conselho de Oiticica (1968): Seja Marginal, Seja Herói.
A brasa da criatividade faz com que Vitória veja a virtualidade artística em elementos cotidianos, descartáveis e já sem valor dentro da lógica de uma sociedade de consumo. O compromisso artístico e social toma formas mais bem definidas quando nos deparamos com cilindros do roll-on de desodorantes, pintados em acrílico e enquadrados em uma lousa, que também teria como destino o descarte. Conexões inusitadas como essa nos fazem lembrar na poluição proveniente de um consumo predatório e desenfreado, por outro lado, podemos também vislumbrar paisagens ecológicas a partir da reavaliação nos nossos próprios hábitos de consumo.
Me sinto na obrigação, após ser afetado, de reavaliar duas experiências artísticas a mim proporcionadas por Basaia: “Variações inusitadas de Vitória Basaia”, “O grande veleiro” e “Arqueologia do museu dos mares”, estas últimas duas, em diálogo com as obras do artista Arthur Bispo do Rosário.
Variações inusitadas de Vitoria Basaia
A exposição, que aconteceu entre setembro e outubro, na galeria ARTO intrigava os pedestres que observavam casualmente a fachada do espaço. Com parte das obras – plásticos queimados e retrabalhados artisticamente, disformes ou, digamos, de particularidade morfológica – exibidas logo acima da porta de entrada. Fios, bonecas, pedaços de metais e plástico e pinturas ressignificavam o interior do espaço e davam um pequeno gosto do universo de Basaia.
Os pigmentos naturais do cerrado coloriam papéis Canson e sapatos velhos com a mesma intensidade. Uma experiência que pode perturbar os não iniciados no estudo da arte ou até mesmo os que conservam a percepção estética clássica, já que forma, técnica e função tomam a liberdade de afetar pragmatismos. Isso fica evidente pela escolha dos materiais, um dos traços distintivos da artista.
Rolos para fios elétricos esculpidos no fogo habitavam no mesmo espaço que pinturas sobre telas, Marcos de Lontra Costa chama atenção para a paisagem que é a própria obra em Basaia, dotada do potencial fértil, que toma diversas formas em sua produção, cria um universo fantasioso repleto de personagens, muitas vezes diametralmente diferentes das noções clássicas de beleza. Faces em latas de alumínio conferiam animosidade a elementos a priori inanimados, suscitando questões contemporâneas de ordem variadas, das noções de consumo à apatia do cotidiano, em relação ao meio em que vivemos.
O simbólico sobre o estético cria fantasias materializadas, como um sapato que se torna um jacaré-sapato, com os zípers representando os dentes e a mandíbula do animal tão importante para a cultura mato-grossense. A artista e crítica literária Aline Figueiredo ressalta a contemporaneidade de Basaia em seu movimento viver-ressignificar. O conhecimento e técnicas formais, por muito tempo (tempo até demais!) cultuadas dão espaço ao criar sua mutabilidade na condição do viver. Sintomático dos tempos, termos de recorrer à fantasias para olharmos com maior carinho e humanidade para nossa sociedade e nossas práticas.
O grande veleiro e arqueologia dos meus mares
Apresentada na galeria do Sesc Arsenal no mês de Outubro, a exposição projetou uma releitura das obras do artista sergipano Bispo do Rosário, pela ótica de Basaia, trazendo consigo a aura que envolve a figura do artista, considerado esquizofrênico, passando a maior parte de sua vida internado na antiga Colônia Juliano Moreira, no Rio de Janeiro, instituição destinada a abrigar indivíduos considerados loucos, anormais ou simplesmente indesejados pela sociedade.
Das possibilidades de paralelos a serem traçados pelos dois artistas, o mais evidente fica por parte do potencial artístico dos objetos, “criar com qualquer matéria”, como dito pela artista, além de referenciar Manoel de Barros em sua capacidade de transformar e brincar com as palavras, questionando a objetividade empregada na visão de mundo reproduzida pelo status quo.
Bourriaud classifica a interatividade como principal distinção da arte contemporânea e isso não é deixado de lado por Basaia, nem mesmo pelo próprio Bispo do Rosário, mesmo tendo produzido muitos anos antes das formulações do teórico da arte e curador francês. Ela surge mais explicitamente no “manto” feito por Vitória, reproduzindo a icônica vestimenta do artista sergipano.
A exposição teve duas partes que coexistiram, “Grande Veleiro” se encarregou de reproduzir o universo de Bispo do Rosário, com uma instalação que nos levava a embarcar em um mar da arte do artista, com instalações, tapeçarias, bordados, colagens, ringue de box – esporte que o artista praticava antes da internação – entre outras expressões. Já “Arqueologia do Museu dos Mares” desenvolveu-se em simbiose com a reprodução da exposição do Bispo, onde pudemos ver a influência de Rosário em Vitória. Duas figuras roubaram a cena, a colcha de retalhos referida no início do texto e a presença de uma tartaruga, pintada na mesma colcha e figura presente em outros formatos de expressão do universo de Basaia, que na oportunidade nos explicou que se tratava de uma menção à simbologia da tartaruga, que gesta centenas de filhotes, que cria e em alguns discursos mitológicos é tida como a entidade que carrega o mundo em suas costas.
Referências bibliográficas
BERTOLOTO, José S. ROMÃO, Alexandro U. O universo poético de Vitória Basaia. Cuiabá, MT. Fractal, rev. Psicol., vol.26 – p.659 – 678. 2014.
BERTOLOTO, José S. Catálogo da exposição Variações inusitadas de Vitória Basaia. Cuiabá, MT. ARTO Galeria. 2018.
BORRIAUD, Nicolas. Estética Relacional. São Paulo, SP. Martins Fontes. 2009.
SATO, Michele. Vitória Basaia [Jornalista, Artista Plástica, Educadora e Produtora Cultural Brasileira]. Disponível em: http://sociedadedospoetasamigos.blogspot.com/2012/05/vitoria-basaia-jornalista-artista.html. Acesso em: 28 Out de 2018.
*Leonardo Roberto é estudante de mestrado no programa de Estudos de Cultura Contemporânea na Universidade Federal do Mato Grosso (ECCO-PPG).