Por Simone Ishizuka*

Era verão em Londres. Embora seja ‘cuiabana de pé rachado’, ainda sofri um pouco na minha casa, que derretia. Acho que eles não faziam estruturas para o calor, já que não havia quase ventilação dentro delas. Suportei. Fazia poucas semanas que estava do outro lado do continente, animada, feliz, conhecendo muita gente diferente e fazendo aqueles novos ‘irmãos da vida’.

No auge dos 30° dos dias quentes e incomuns daquela terra gelada, quis fazer um domingo tipicamente brasileiro. Juntamente com a Marina (uma dessas pessoas maravilhosas que a gente encontra nesses lugares doidos do mundo) fiz um belo de um arroz, bife com batata frita. Peguei um ventilador e posicionei em cima da gente, abri uma cerveja gelada (Foster, claro!) e liguei o som.

Quando os batuques começaram, Marina logo perguntou “Quem que tá cantando aí?”, e eu já disse “Wilson Simonal”. Na hora começamos a pirar com aquele som. A voz poderosa do ‘Simona’, que ele conseguia brincar tão majestosamente, com aquele ar cômico de ‘pilantragem’ na década de 1960. Não é a toa que ele é considerado um dos maiores cantores que passou nesse país, mesmo que tenha caído no total esquecimento nos dias de hoje.

‘Sessão Brasil’ conta a história de Wilson Simonal

Em nosso ‘grande almoço’, lembro que comecei a contar para ela sobre o documentário ‘Simonal – Ninguém Sabe o Duro que Dei’, lançado em 2009 e dirigido por Cláudio Manoel (o Maçaranduba do Caceta e Planeta). O longa, de 1h24, traça fielmente a aura do cantor, com cores, imagens e muita música boa.

Durante a conversa, comecei a contar um pouco sobre a vida dele. Simonal, que veio de família pobre, passou a ser cabo do exército e, em seguida, se destacou na carreira musical. Uma mudança um tanto radical.

Em meio às baladinhas do ‘ie ie ie’, ele era o único que conseguia desbancar a música estrangeira com os ritmos brasileiros nos ‘bailes’ da época.

Com a famosa faixa amarrada na cabeça, e com o jeito único de tratar o público, se consagrou com um sucesso atrás do outro, como “Balanço Zona Sul”, “Lobo Bobo”, “Mamãe Passou Açúcar em Mim”, “Nem Vem Que não Tem”, além de ter regravado “País Tropical” e ser inventor do famoso ‘Pa-Tro-Pi’.

Com tanto hit na bagagem, Simonal era um verdadeiro ‘showman’ que cantava espetacularmente e tinha uma presença de palco absurda.

Uma prova de que isso era real, foi quando Simonal abriu o show de um cantor famoso na época (não vou lembrar o nome), que era o atual ganhador do Grammy Latino. Após fazer um show arrepiante e levar o público a loucura com o hit ‘Meu Limão, Meu Limoeiro’, este mesmo cantor, ao subir ao palco para começar a apresentação, foi abertamente vaiado pela plateia, que suplicava pela volta de Simonal ao palco.

Não era à toa. Ele era o ‘rei da cocada preta’. Um maestro do público. Que saía maravilhado das apresentações. Aqui neste vídeo, dá para se ter uma ideia do que estou falando:

Comentei também sobre a amizade entre ele e o Pelé. A parceria era tanta, que ‘Simona’ acompanhou os jogos da seleção na Copa de 1970. Fazia apresentações particulares, com farras na concentração e mostrando todo aquele gingado brasileiro às terras mexicanas. Ainda no documentário, amigos próximos contaram que ele era tão vaidoso, que a seleção inteira pregou uma peça nele (episódio que gosto de contar).

Com a desistência de um dos escalados, a seleção o ‘chamou’ para substituição, pois o jogador estava machucado. Mesmo não tendo nenhum porte atlético para um jogador de futebol, e nunca ter jogado para nenhum time, ele ainda topou. E, segundo amigos, logo nos primeiros 15 minutos de treino, Simonal desmaiou devido a altitude do país. Ao acordar, todos estavam ao redor rindo da cara dele, que acreditava até o último minuto que seria o ‘ponta direita da seleção brasileira da Copa de 70’.

PeléSimonal

Mesmo com as ‘zoações’, que é de praxe em qualquer vida, tudo era aparentemente perfeito para Simonal. Um negro em meios à elite branca da música popular brasileira, que fazia seus protestos ácidos com o que ele sabia fazer de melhor, dentro de um grupo praticamente intocável para os parâmetros da época.

No entanto, nem tudo foram flores na vida deste grande artista. Com a carreira praticamente intacta, Simonal acumulou muitos gastos com a boemia, e fazia questão de mostrar tudo que tinha. O que, na minha opinião, era justo depois de tanta luta para chegar onde ele conseguiu. Mas o infeliz episódio do ‘contador’, que envolveu tortura, depoimentos e declarações infelizes, fez com que o ‘rei da cocada preta’ perdesse tudo que tinha, inclusive a confiança da classe artística, mídia e do governo. Todos ficaram contra Simonal e ele caiu no hiato da música popular brasileira.

Sei que seria conveniente citar sobre o que aconteceu na época, conforme o documentário. Mas prefiro que vocês assistam o longa e tirem as próprias conclusões. Porque para mim, foi um preço muito alto, que custou a vida e a alegria do cara ‘mais feliz’ do mundo.

Mesmo não ter conhecido sua obra quando ainda estava vivo, acho que posso sentir parte de toda aquela energia que ele transmitia. É algo sem igual, que mudou todo o meu conceito sobre a música. E até hoje, quando coloco o som dele, alguém fica hipnotizado pela voz e gingado deste adepto da ‘pilantragem’, que levou multidões no Brasil e no mundo.

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E com toda essa reflexão, volto àquele dia quente em Londres. E fico imaginando quantos dias especiais este cara proporcionou às antigas e novas gerações, que se deixavam levar por aquele ‘maestro’ da alegria.

Bom, espero que esta apresentação faça com que os leitores tenham muitos ‘almoços quentes’ como o nosso, seja qual parte do globo estiverem. E curtam o som deste cara. Vai valer a pena, garanto.

*Simone Ishizuka é jornalista, artista, gosta de desenhar e agora descobriu a cerâmica 

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