O vento frio e o dia cinza. Talvez fosse um presságio de que o caminho seria mais tortuoso do que pensávamos. Depois de alguns meses de espera e ansiedade, após o último encontro em nosso quintal, desembarcamos na sexta-feira, 3 de junho, no Rio de Janeiro para passarmos um fim de semana dedicado à Wlademir Dias-Pino e a sua exposição “O poema infinito” que segue em cartaz no Museu de Arte do Rio (MAR) até julho.
O Sol ainda se recusava a aparecer no sábado quando fomos nos encontrar com Regina Pouchain, artista, escritora, a companheira de Wlade, no saguão do MAR. Ao chegar na Praça Mauá, a vista do lugar já valeu todo o percurso e até o dia cinza. O mar se estendia à frente, e navios ao longe navegavam suas pesadas cargas. Pessoas circulavam na praça e o Museu de Arte do Rio se estendia imponente, com o terraço aberto e paredes de vidro que me revelaram Regina sentada, a nos esperar.
Ela logo disse: “Pensei que não fossem me reconhecer, já faz um tempo”. E rimos disso, afinal, Regina não teria como saber a dimensão do que significou nosso encontro, sua poética performance inflamada em que nos recitou o poema que compôs em homenagem à Wlade, quando o conheceu. “Hiper hipnótico”. Foi inesquecível.
Mesmo com seu sorriso a nos confortar, sentíamos o peso da ausência dele. São 89 anos com um ritmo de trabalho incansável, afinal, Regina nos conta que Wlademir Dias-Pino trabalha todos os dias. A arte é sua mãe, esposa, filha, amor da vida toda, diz ela. Mas, por uma ironia cruel do destino, Wlade foi acometido por uma gripe e estava em repouso total. Não seria possível uma entrevista com ele. Ela nos diz que de qualquer maneira, ele faz questão de falar conosco por telefone.
Entramos na exposição acompanhados por Regina, subimos de elevador, chegamos ao ponto alto do prédio onde podíamos ver a praça Mauá e o mar, até o penúltimo andar, sem subir ao terraço. Passamos por um corredor de madeira, descemos uma escada e voilá. O poema infinito.
A exposição é gigante. É surreal o tamanho da produção deste artista. É tridimensional pensar que Wlademir consegue construir ao seu redor, um universo inteiro visual, de literatura, de arte, de esculturas, de formas, de pensares. Eram 10h30. Regina pediu para seguirmos a linha do tempo da exposição e nos deixou a vontade. Cada um foi absorver a seu modo todo aquele infinito poema.
Comecei a ler a história deste artista, sua família anarquista, com presos políticos: avô, pai, tio. Cresceu em uma gráfica, aprendeu a ler com a mãe Laura, que o ensinava para não mandá-lo tão cedo à escola, e recortava palavras para formar frases junto ao filho. Em sua infância foi cercado por palavras soltas, logotipos, formas, além do papel, são palpáveis, concretas, e marcam os significados em diferentes superfícies. Dão sentido ao branco do papel. Cheguei até o intensivismo em Mato Grosso com lágrimas nos olhos. Sua história é muito forte.
Aos 11 anos escreveu um livro. Em segredo, o pai imprimiu a obra em sua gráfica, e Wlademir com vergonha queimou todos os exemplares. Seu primeiro livro publicado foi no ano seguinte, aos 12 anos, em 1939, e com sua aprovação, se tratava de “Os corcundas”. Wlade criança elaborou um índice em forma de roda com palavras que tratavam sobre a disformidade do universo circense, palavras que não eram consideradas bonitas para estarem na literatura. Esta obra foi reimpressa em 1954, e por um erro constou como primeira edição. “Os corcundas” foi considerado pela crítica como um livro maduro e pleno que vem comprovar a genialidade de Wlademir. Exceto, que a crítica desconhecia ser um livro feito pelo Wlade criança (risos). Inevitável pensar: o que você fazia aos 12 anos?
Com lágrimas nos olhos, mexida pela força de Wlademir, e sem ter visto 1/4 da exposição, resolvemos sair para almoçar pois o relógio batia 12 horas. Regina nos levou até um restaurante, comemos, conversamos sobre arte, sobre Wlademir e fomos passear pela praça Mauá onde uma fila enorme para o Museu do Amanhã acompanhava o trajeto que fizemos para chegar a beira-mar. Pensei que aquelas pessoas sequer sabiam que o verdadeiro tesouro era um poema infinito no 5º andar do MAR.
Enquanto passeávamos pela orla, Regina ficou para trás sentada ao banco. Falava com Wlademir ao telefone. Primeiro, ele falou com a Carol e depois comigo. Foi muito íntimo e carinhoso, pediu desculpas por não poder nos ver e pela voz grossa que parecia a de um fantasma. Disse que tudo bem e que ele precisava melhorar. Me perguntou o que achei da exposição e lhe disse que cheguei até o intensivismo com lágrimas nos olhos e que percebi que era uma homenagem à Cuiabá.
Com uma voz um pouco mais renovada, Wlademir disse: Você percebeu que era uma homenagem à Cuiabá? Era para ser mais. Mas, eu não pude fazer como queria. A logo da UFMT era para estar mais destacada. Não pude fazer como queria e também não quis fazer tanta oposição.
Wlademir continua e diz que as pessoas precisam conhecer Cuiabá, e que homenagear Cuiabá em Cuiabá é muito bajulatório. Ele diz que na Bienal de São Paulo em setembro, para a qual foi convidado, querem os mesmos painéis que estavam expostos em praça aqui. “Eu tenho tanto trabalho inédito, porque fazer o mesmo”, questiona.
Então ele prossegue e diz que quer fazer uma homenagem à Cuiabá, o Sol, o centro geodésico da América do Sul, que forma um triângulo no mapa com os outros centros geodésicos do mundo, e que temos que ser o coração de uma campanha internacional pelo meio ambiente. “Eu sei que é sonhar alto, mas eu não me importo, não tenho medo de perseguir utopias”.
Me pergunta o que eu falei e eu digo que não importa, pois eu prefiro ouvi-lo. “Mas eu preciso ouvir também”. Enquanto ouço Wlademir falar sobre tantos sonhos, sobre Cuiabá, essa conexão que sente com a cidade que ajudou a construir, com todas essas vidas que se interligaram aqui para fazer uma arte revolucionária, de vanguarda, o devir da rua me faz imaginar como seria expor seu trabalho em praça pública.
As pessoas não entendem Wlademir. É difícil compreendê-lo. É muito intenso. Seu pensamento é multifacetado em uma integralidade única. Não consigo explicar, apenas sentir. E vi muitas pessoas se chocarem, se questionarem, não entenderem, preferirem às imagens aos símbolos que na verdade, são poemas, são palavras, significados. Cada um pode se significar através da arte de Wlademir.
As crianças interagem com as obras, formam poemas, palavras, se arrastam pelo chão, correm, riem, brincam. E tenho certeza que elas jamais esqueceram o dia no Museu, montando sentidos como um quebra-cabeça.
E é isso o que Wlademir nos proporciona: juntar as peças do nosso próprio quebra-cabeça, encontrar nossos próprios significados, trazer um sentido para o aparentemente comum, ordinário, trivial. Tudo reflete em seus olhos mágicos e eu penso com todo o clichê mais sincero do mundo… que seja eterno e perdure.
[…] dos fundadores deste movimento é o precursor da poesia visual Wlademir Dias-Pino. Até chegar ao poema//processo, um longo caminho é trilhado. Desde 2014, quando o entrevistei […]